sábado, 27 de outubro de 2012

Conto "Visões"


Este conto começou a ser escrito no dia 26 de setembro de 2012 e encerrou no dia 25 de outubro de 2012.


Um dom especial tem ameaçado a vida da jovem Tâmara. Muito sangue e um homem misterioso aparecem constantemente tornando a vida dela numa loucura.


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[1]
Lembro-me de quando eu era pequena e brincava com meu primo de esconde-esconde... Ele sempre ficava chateado comigo porque eu descobria o lugar onde ele estava em poucos segundos. Ele me perguntava como eu sabia onde ele estava se eu nem havia procurado em outros lugares... Eu não sabia responder. Eu apenas sabia que ele estava lá antes de ele estar. Era uma imagem que se formava na minha cabeça, a imagem perfeita do local.
Conforme eu fui crescendo, fui vendo muito mais coisas do que apenas onde meu primo se escondia. Eu vejo o que muitos dizem não ser possível saber. Cansei de dizer que estou prevendo algo e todos fugirem de mim ou rir da minha cara dizendo que sou insana.
O problema é que tem acontecido fatos estranhos nos últimos anos. Está vindo tudo em códigos... Antes era claro, eu sabia o que ia acontecer. Agora, não sei mais. Sempre vem uma charada para que eu tenha que desvendar... E dificilmente acaba bem...


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[2]
Eu estava conversando com a Virgínia, minha colega de faculdade e amiga desde meus 10 anos de idade (a única amiga). Não lembro agora do que estávamos falando, mas de repente, eu comecei a enxergar algo. Ela já sabe quando eu estou vendo coisas, e é a única que acredita em mim.
Em minha cabeça, havia a imagem de uma pessoa com uma longa capa escura, botas e um chapéu que fazia sua face ficar imersa em escuridão. Era noite, num local mal-iluminado e estava chovendo forte. A pessoa estava com uma pá na mão, cavando fortemente em um ritmo compassado. Havia lama em boa parte das pernas. Não entendi para quê ela estava cavando aquele buraco, não havia nada por perto que pudesse ser enterrado. A pessoa se voltou "para mim" e ficou parada, com a pá na mão, "me olhando" embora eu não visse seu rosto ou não estivesse lá no local. Como alguém que encara uma câmera, sabe?
Voltei a mim. Minha pele estava toda arrepiada com aquela cena. Não entendi nada, mas não parecia ser bom... O que faz um estranho cavar um buraco numa noite chuvosa e escura?
-Tâmara... Tá bem? O que você viu? - Virgínia me perguntou, colocando a mão em meu ombro.
Eu desviei o olhar e vi próximo a nós, encostada em uma parede da sala da limpeza, uma pá idêntica à que eu vi em minha mente.
-Vem Virgínia, vamos sair daqui... - eu a puxei para sair dali o mais rápido possível - Quando eu entender o que eu vi eu te conto...
Tive mais algumas aulas e fui para casa pensando naquilo... O que quer dizer?
Talvez eu tenha que esperar mais uma dica para decifrar... Ou pode ser tarde demais.

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[3]
Se passaram dois dias e nada de novo havia acontecido. Ou talvez eu simplesmente não soubesse ainda.
-Tâmara do céu! Você ficou sabendo?? - Virgínia chegou eufórica e assustada para falar comigo.
-Ã? Sabendo o quê? - perguntei.
-Sabe aquela menina do curso de história, que estava sumida a alguns dias?
-Eu não estava sabendo disso, Vi... Mas bem o que houve?
-Mataram ela! Encontraram o corpo dela hoje de manhã. Parece que ela foi enterrada viva e morreu asfixiada com lama...
Eu fiquei chocada. Eu previ uma morte mesmo? Tentei juntar os pontos... Havia chovido duas noites atrás... Um dia após eu ter minha visão. Choveu torrencialmente. Deve ter acontecido naquela noite mesmo. Mas como eu iria descobrir que a menina seria a vítima se ela não havia aparecido em minha mente? E eu não sabia o local também.
Estava parada, pensando, olhando para o nada. Virgínia interrompeu meu raciocínio.
-Tâmara, sabe o que é mais sinistro nessa história toda? - ela me perguntou com um ar de quem está narrando um conto de terror em um acampamento - Ela foi enterrada aqui perto, na universidade, dentro da mata... E encontraram a pá que a enterrou. É a pá que o lixeiro daqui do bloco usa para carregar o lixo...
Então é isso... Eu vi o instrumento que o assassino usou para enterrar a garota. Estava ali, na minha frente...
-Há mais alguma informação, Vi? - eu perguntei. Qualquer outra informação pode ser peça fundamental para resolver outro "quebra-cabeças" que apareça em minha mente.
-Olha Tâmi... Eu ouvi dizer que ela era envolvida com forças ocultas, bruxarias... Mas não posso te confirmar...
Passei a tarde tomada por meus pensamentos, envolta em questões que não poderiam ser respondidas sem mais pistas.
Durante a aula de filosofia, enquanto eu encarava o professor e estava imersa em meu próprio mundo, fui surpreendida pela imagem da pessoa de capa da outra visão entrando pela sala. A bota suja de lama deixava o rastro pela sala. Ninguém parecia ter notado ele. Seu rosto ainda era uma incógnita. Quando se posicionou atrás do professor, ele levantou o braço direito, que segurava um punhal grande e imponente. Arregalei os olhos, tudo parecia muito real. "Isso tem que ser uma visão, as pessoas não deixariam isso acontecer de verdade!" eu tentei me acalmar. O ser puxou o braço um pouco para trás, como quem busca forças para atacar alguém. Era real demais para mim.
-CUIDADO PROFESSOR! - eu me levantei e gritei no meio da aula.
A figura sumiu. Todos me olhavam assustados, me achando louca.
Me sentei, estava muito envergonhada. 
Aquilo significa alguma coisa... O que pode ser?
Será que eu devo investigar a vida do professor antes que ela seja tomada?

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[4]
Era hora do intervalo, eu observava o professor de filosofia de longe, tentando decifrar alguma coisa nele que levasse aquela figura a fazer uma visita a ele. 
Nada... Aparentemente normal. Talvez um pouco introspectivo, mas, pensar sobre a vida é uma das coisas que os filósofos fazem, certo?
Minha visão foi ficando vermelha... Eu estava no meio de alguma visão novamente. Tudo estava em tom vermelho. O professor virou a cabeça em minha direção, os olhos estavam completamente vermelhos também. A cabeça continuou girando, até que completou 360 graus de giro. Franzi a testa, me lembrei de cenas de filme de terror. Ele começou a vomitar no chão, mas ao invés de tudo virar uma poça, ele foi "desenhando" números. Ao fim, ele escreveu: 2 - 18 - 21 - 23 - 15 - 19.
Tudo voltou ao normal. Aquilo que eu vi era algo inédito. Pela primeira vez não era algo que vai acontecer, mas sim uma pista. Como se alguém estivesse interferindo minha cabeça.
Estou confusa... O que significam aqueles número? Quem poderia tomar controle da minha mente a ponto de me fazer ver o que ela quer?
Qualquer um aqui pode estar me observando e me fazendo ver as cenas terríveis que ele quiser. Mas quem??
Talvez eu tenha que descobrir o que significam aqueles números para entender.

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[5]
Deitada na cama, olhando para o teto, a ideia de ter alguém invadindo a minha cabeça me aterrorizava. O vento que entrava pela janela fazia a cortina mover-se como quem corre em desespero: freneticamente, sem ordem. Pareciam meus pensamentos.
"Eu preciso dormir!"
Me levantei da cama, fui fechar a janela e dei uma última olhada para a rua. De longe, eu avistei alguém do outro lado da avenida, parado. Parecia estar olhando para mim. Não consegui ver se era homem ou mulher - pelo que vi, essa pessoa estava vestindo o que parecia ser um longo casaco escuro com capuz. A luz do poste refletia em seu rosto e gerava dois brilhos pequenos, que pareciam ser reflexos de óculos. Senti como se o vento frio estivesse congelando meu interior. Será que é aquela pessoa que vi enterrando a menina e depois degolando o professor de filosofia?
Baixei o vidro com violência - foi uma maneira de me acordar também. Com um piscar de olhos a pessoa não estava mais lá. Será que realmente esteve antes?
Senti movimentações dentro de meu quarto. A luz fraca que entrava de fora não revelava nada fora do normal. Fui em um pulo direto para a cama e me encolhi embaixo do cobertor grosso. Ouvi como se algo estivesse roçando nos pés da cama. Fechei os olhos com força e em minha mente se formou a imagem do alfabeto, com letras brancas em um fundo preto.
"TUM TUM TUM"
Eram reais. Pancadas embaixo da minha cama.
Eu abri os olhos, vi as cortinas paradas.
"Quem está aí? Por favor, me diga..."

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[6]
"Miau..." recebi como resposta.
Respirei aliviada. Era apenas o Príncipe, meu gatinho siamês.
-Príncipe, você quer me matar do coração?
Puxei-o para o colchão e o abracei, ele adora quando eu faço isso. Fiquei alisando seu pêlo enquanto continuava olhando para a janela. Em algum momento da noite eu dormi.
O dia amanheceu chuvoso, escuro, com muito vento. Estranhei estar muito frio no meu quart
o, então quando me virei para o lado da janela, a cortina estava voando violentamente e parecia estar muito molhada.
"Mas como assim? Como essa janela foi aberta?"
Me levantei e fui conferir a porta do quarto - ela estava trancada, como eu havia deixado antes de dormir.
Cheguei perto da janela e a fechei novamente. Minha respiração embaçou o vidro e acabou revelando uma mensagem. Exatamente a mesma mensagem que vi em minha visão: 2 - 18 - 21 - 23 - 15 - 19.
Me afastei, assustada. Olhei ao redor, nos cantos, não havia ninguém ali comigo.
-Príncipe, você viu o que aconteceu?
Voltei para debaixo das cobertas, com o corpo trêmulo e alguns arrepios.
"PÁ, PÁ, PÁ!" - Era a minha mãe batendo na porta - "Tâm, acorda, hoje você tem psiquiatra!"
Ir ao psiquiatra foi uma das condições para que eu continuasse ganhando dinheiro e pudesse ter o Príncipe. Eu detesto isso, mas enquanto não aparece um trabalho e uma chance para eu ir embora, é isso que me resta.
Me levantei, me arrumei, tomei café. Não falei nada sobre o aconteceu durante a madrugada, minha mãe nunca iria acreditar.
Na verdade, nem eu sei o que houve. E ainda estou tentando decifrar aqueles números.

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[7]
Cheguei ao consultório do psiquiatra, o cheiro de tecido sujo e velho impregnava o local. Sempre foi assim, um local meio obscuro... Pelo menos para mim.
Enquanto eu esperava, fiquei refletindo sobre o meu desafio. Seriam coordenadas? Datas? Idades? Caramba... Que complicado...
Levantei a vista e percebi um garotinho de seus 10 anos olhando para mim. Era um olhar perdido, parecia o olhar de um morto. Mas de alguma maneira, ele era profundo. Observando melhor, os olhos dele se mexiam levemente, como se ele estivesse vendo algo dentro de mim. Estaria "me lendo"? E se eu tentasse falar algo para ele?
"Você está me entendendo?" pensei.
Seus olhos pararam e ficaram um pouco mais arregalados. Fiquei tensa. Será que eu estou vulnerável? Nossos olhos pareciam estar ligados por uma força magnética. Ele era um mistério e parecia querer me dizer algo também. Ou era apenas uma criança louca.
A mãe dele, que estava ao lado lendo uma revista percebeu o filho me encarando e colocou a mão na frente do rosto dele. "Filho, pára com isso, não fica constrangendo a moça!" ela falou.
Senti como se tivesse "acordando". A recepcionista chamou meu nome, balancei minha cabeça para cair em mim e fui para a sala do médico.
Estava mais escuro que o normal lá dentro. Doutor Júlio me recepcionou com seu hálito de tabaco. Tudo estava estranho.
Me senti acanhada em falar o que estava acontecendo, simplesmente travei. Ele me perguntava e eu respondia secamente, com monossílabas, com a cabeça baixa. Em um certo momento, doutor Júlio pediu pra eu olhasse para ele. Resisti, mas quando finalmente o olhei, senti um choque passando por todo meu corpo. Seus óculos refletiam a luz fraca de um abajur da mesma maneira que os óculos aquela pessoa que eu vi de madrugada, que refletiam a luz de um poste. Engoli seco. Será?
-Eu... Eu preciso ir! - falei me levantando.
-O quê? Não, ainda temos 30 minutos de sessão! - ele falou, se levantando também.
Me apressei e passei por ele, indo em direção à porta.
-Eu não estou me sentindo bem! Preciso ir para casa... - fui abrindo a porta.
-Certo... Mas, Tâmara? - eu parei e voltei a cabeça para ele - Cuidado com seus pensamentos...
Franzi a testa e saí depressa. Estou horrorizada.

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[8]
Na rua, o vento gelado no meu rosto fazia meus cabelos se embaralharem e meu nariz ficar frio. Me escondi um pouco mais dentro do meu casaco, deixando que a gola cobrisse uma parte da minha bochecha. Em passos rápidos eu andava na calçada em direção ao ponto de ônibus. Senti que todos que passavam por mim me olhavam diferente - ainda mais diferente do que o normal. Procurei baixar a vista e evitá-los.
Eu estava tão rápida que sem perceber, já estava quase correndo, sem olhar para frente.
Foi inevitável: bati de frente com alguém que provavelmente estava tão distraído quanto eu. A pessoa era alta e era um homem,percebi pois bati em seu peito. Com a pancada eu caí sentada no chão. Esperei por um momento, achei que o homem iria me levantar, é o mínimo que se espera. Mas não. Fui levantando a vista e vendo uma pessoa muito alta, com uma longa capa escura, fechada. No rosto, um óculos escuro e uma expressão congelada, séria. O capuz na cabeça não me deixou identificá-lo propriamente, além do mais, ele estava contra a luz. Meu coração ficou mais batendo forte, as batidas ecoavam na minha cabeça. Me levantei com um pouco de dificuldade, desviei dele e fui correndo (correndo mesmo!) para longe. Qualquer lugar que não fosse ali.
Entrei em uma loja, nem vi qual era. O sininho da porta alarmou minha chegada. Minha respiração ofegante chamou a atenção da vendedora.
-Você está bem, jovem? - ela me perguntou, se aproximando de mim.
Olhei ao redor, a loja escura apresentava algumas velas coloridas, incensos, algumas estátuas... Era uma loja exotérica. Eu nunca havia visto ela antes. Não me senti bem ali dentro, as imagens pareciam estar me encarando e me consumindo.
-Mocinha... Você não está nada bem... Sua cabeça está uma confusão... - olhei para ela com um olhar assustado, tentando entender o que ela estava falando - Tâmara, você está como um livro aberto...
A mulher, com seus óculos de grau alto e uma grande cicatriz na testa, sorriu de maneira horrenda, revelando dentes grandes e sujos.
-Não... Não... Me deixa... - eu falei, empurrando-a de leve, para conseguir sair daquele lugar. Saí.
Isso está cada vez pior!

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[10]
Cheguei na faculdade, havia um amontoado de gente na porta do prédio onde estudo. No momento em que eu me aproximava, carros da polícia e do serviço de emergência se aproximavam. Apressei o passo.
Passei pelo aperto entre a multidão e me deparei com o professor de filosofia todo ensanguentado, recebendo atendimento médico. Ele parecia ter sofrido vários cortes pelo corpo e deixado para sangrar até a morte na entrada do prédio onde estudo. Apesar das tentativas de salvamento, ele não parecia estar reagindo. Em poucos minutos foi colocado em uma maca e levado ao hospital.
Não houve aula, todos estavam muito chocados. Eu queria que ele sobrevivesse, queria que ele pudesse dizer quem havia feito aquilo com ele.
À noite, o acontecido foi notícia em todos os jornais. Assisti a todos esperando ver alguma coisa que a pessoa misteriosa tenha deixado como pista. Nada. Até que passou no último jornal da noite um detalhe que nenhum outro havia mencionado antes.
O professor ainda estava vivo, e na testa dele havia inscrições de números... Os mesmos números que a pessoa havia me passado.
Me passou na cabeça então fazer algo que eu não havia feito antes - procurar os números na internet. Não apareceu nada sobre os números nas primeiras dez páginas. Na décima primeira fui redirecionada por um link para a deep web. E foi onde encontrei o significado... Os número fazem parte de uma seita nórdica conhecida como Brüm Hjäerd, que são conhecidos por matar envolvidos com magia. Me assustei ao ver que para eles, a vidência é um tipo de bruxaria. Estava no site, lendo a respeito da seita quando meu computador ficou todo escuro, apagou de vez. Com dois segundos, dois olhos grandes e vermelhos apareceram na tela e com uma expressão maligna ele me observava. Senti um frio na espinha.
"Nós estamos observando você" foi escrito com letras de sangue. Em seguida o computador pifou.

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[11]
Não sei mais o que pensar ou o que fazer. Eu devo esperar uma reação deles? Esperar uma tentativa de assassinato? E se eu tentar contar isso à polícia, parecerei uma louca?
Eu estava pensando em tentar falar com o professor... Ele conseguiu sobreviver... Talvez tenha uma pista.
E aí? Tento pedir ajuda a autoridades ou vou falar com o professor?


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[12]
Estava caminhando pela rua, apertando meu casaco contra minha pele, me protegendo do vento gélido. Como sempre, buscava evitar os olhares dos outros. 
Minha visão foi ficando turva e eu consegui ver outra coisa em minha mente: era uma manhã nublada, duas crianças corriam em um gramado extenso enquanto um adulto, de costas, olhava a movimentação. Ele parecia estar com um copo na mão, que levava para a boca de tempo em tempo, colocando a cabeça levemente para trás para dar um gole. Após seis ou sete goles, ele colocou a mão para o lado, revelando que ele carregava uma taça com um líquido vermelho escuro, parecido com sangue. A taça foi virando até que o líquido começou a escorrer. Estava quase certa de que era sangue o que escorria da taça para o chão. Minha visão foi se aproximando das costas do homem, eu queria ver seu rosto. Ele começou a virar-se lentamente. Uma máscara de meio rosto cobria seu nariz e olhos, deixando à mostra apenas parte das bochechas e boca. Nunca havia visto esse homem antes. Pelo canto da boca, um rastro de sangue escorria até o queixo. Ele sorriu de uma maneira maligna, seus dentes sujos me faziam lembrar de algo que eu já havia visto. Mas dessa vez ele estava com um pedaço do dente frontal faltando. Teria sofrido uma pancada do professor? Ou seria uma pancada futura?
"Voltei" abrindo os olhos de maneira violenta, como quem acorda de um pesadelo com falta de ar. Olhei ao redor, poucas pessoas estavam por perto. Segui contra o vento na direção da loja exotérica.
Cheguei ao local, mas a porta estava trancada. O vidro revelada um local bagunçado e aparentemente abandonado. Me aproximei mais, coloquei as mãos do lado dos olhos, para enxergar melhor... Nada da mulher estranha... "Melhor ir embora, talvez isso seja um aviso..."
Fui me virando de volta para a rua quando...
-VOCÊ VOLTOU! Eu sabia que ia voltar! - era a mulher da loja, recebendo-me efusivamente, muito mais do que eu esperava e gostaria - Vamos, entre... Parece que você tem algo a me dizer...
Ela me puxou pelo braço e adentramos no local.

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[13]
Entramos na loja, ela acendeu uma luz alaranjada e fraca, puxou uma cadeira para mim e outra para ela, para que sentássemos uma de frente para a outra. Hesitei em sentar mas eu precisava da ajuda dela... Sentamos.
-Então... Quer dizer que você precisa de ajuda? - a mulher estranha foi falando sem que eu tivesse dito coisa alguma.
-Já que a senhora consegue ver tanta coisa, por que não vê por si mesma o que está acontecendo comigo? - falei ironicamente, meio irritada.
Ela deu uma risadinha, se levantou e foi no balcão pegar alguma coisa. Enquanto ela voltava, as sombras em seu rosto revelavam contornos familiares. Aquela boca eu já tinha visto...
-Eu não pretendia te invadir desse jeito, mas já que você pediu... - ela sentou em minha frente e pegou o objeto que havia buscado no balcão: um pedaço retangular de vidro, um pouco maior que meu rosto. 
Ela posicionou o vidro entre nós duas, de forma que eu via uma parte de meu reflexo encaixada no rosto macabro dela.
-O que a senhora está fazendo? - perguntei sem entender nada.
Ela deu uma risada que parecia daquelas bruxas de filme.
-Não me chame de senhora, por favor... Meu nome é Rute. - olhei para ela com um olhar de quem continuava não entendendo nada - Tâmara... Eu consigo ver sua angústia, seu medo... Esse espelho consegue revelar para mim o que eu quero ver... Mas ele também revela para você o que você quiser ver... Tente: pergunte-se em sua mente...
Apesar da racionalidade tentar me impedir de crer naquilo, eu tinha que acreditar, era minha única saída.
Perguntei em minha mente: "Quem está matando essas pessoas?" e um rosto se revelou no vidro.
-Não!! - empurrei o vidro, que caiu no chão e se partiu em pedaços - Não pode ser!!
Me levantei da cadeira, assustada. Rute ficou surpresa com minha reação, mas mudou de expressão rapidamente, deixando transparecer um certo prazer. Ela tentou chegar perto de mim, mas eu corri para a rua, horrorizada.
Não pode ser essa pessoa que está fazendo essas coisas... Não pode ser!!

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[14]
Liguei para minha mãe, desesperada.
-Mãe, eu preciso falar com a senhora, preciso de ajuda!! Por favor, vem me buscar! - falava quase chorando ao telefone.
Vinha à minha mente a imagem do doutor Júlio, com seus dentes esverdeados, a boca escura do tabaco, o olhar perscrutador.
"Ele estava me vigiando esse tempo todo...." fiquei desolada.
Contei meus detalhes mais íntimos para ele... Todos os meus pensamentos, meus medos. Ele me conhece por inteira...
Olhei ao redor para ver se ele não estava por perto. Me senti perdida.
Minha mãe me buscou, tentei explicar para ela a situação, mas ela permanecia cética.
-Filha, olha só o que você está pensando. Ele é só um médico... Não um serial killer de bruxos. Não vai acontecer nada, você está ficando é louca! - ela falava enquanto não tirava o olhar do trânsito.
Desisti dela.
Preciso falar com o professor de filosofia.
E espero não ser pega enquanto tento fazer isso...
Sinto como se dezenas de olhares me observassem nesse momento. Me querendo, me sugando, me matando.

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[15]
Senti como se um relógio estivesse martelando em minha mente. Cada segundo a mais era um a menos que eu tinha de vida. Me levantei da cadeira da sala, onde eu estava encolhida, e decidi que iria naquele momento buscar ajuda do professor. Não dava pra esperar mais nem um momento.
Peguei meu casaco, minha mochila e fui em direção à porta.
-Filha, vai pra onde com essa friagem aí fora? - minha mãe perguntou, esticando o pescoço de onde ela estava para me ver.
Revirei os olhos e falei rispidamente:
-Eu vou salvar a minha vida! Alguém tem que fazer isso por mim!
-Menina, deixa de paranóia! Não tá vendo que você está enlouquecendo? - o telefone começou a tocar - Espera aí que eu vou atender, não sai! 
Respirei para ter mais paciência.
Ouvi a mãe no telefone:
"Alô? Oi! Tudo bem... Quer dizer, mais ou menos né... A Tâmara tá tendo uns probleminhas, sabe doutor? É, pois é... Não sabia que ela tinha fugido da consulta! Bom, que ótimo! Bom saber. Tá certo, vou avisar pra ela, até mais!"
Eu estava mais gelada que o vento frio da rua. Que diabos esse cara tinha falado pra minha mãe?
-Tâm, por que você não me falou que fugiu da consulta com doutor Júlio? - ela falou em pé, com as mãos na cintura.
-Eu não estava me sentindo bem, mãe...
-Eu estou cansada dessas suas desculpas! Nós temos um trato! Se você continuar descumprindo, eu vou descumprir também! E ah, tire essa mochila das costas e vá pra sala que doutor Júlio chega daqui a pouco aqui em casa...
-QUÊ? ELE O QUÊ? - perguntei assustada.
-É isso mesmo! Ele disso que abriu uma exceção pra você e vai fazer seu atendimento à domicílio. - ela falou e se virou tranquilamente para voltar para onde estava - E não invente de fugir de novo, ou já sabe!
Estou chocada! Não pode ser coincidência!
E agora? Fico para ver o que pode acontecer ou fujo enquanto há tempo?


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[16]
Já haviam se passado 10 minutos desde a ligação do doutor Júlio e eu ficava cada vez mais nervosa. Lembrava daquele sorriso sujo, foi como se de repente eu notasse toda a escuridão que habita nele. Como nunca vi isso antes?
Minha mãe não parava de olhar pra mim. Me levantei para ir em direção à cozinha e ela perguntou o que eu ia fazer. "Vou beber água, pode?" respondi na defensiva. Ela se levantou e foi comigo até a geladeira. Voltamos à sala, eu já estava enlouquecendo! Não quero ver aquele homem novamente!
-Mãe, eu não me sinto bem perto do doutor Júlio... - falei pra ela tentando olhar nos olhos, sem passar todo meu sentimento de medo.
A campainha tocou. Era ele, eu senti. Minha mente começou a embaralhar, parecia que tinha alguém também tocando na campainha da sanidade que protege minha cabeça.
-Filha, vai lá abrir a porta. A gente conversa sobre isso depois, tá? - minha mãe pediu, sem dar muita importância para o que eu tentei falar.
Fechei os olhos por um segundo e fui lentamente para a porta. Um chiado cada vez mais forte vinha do lado de fora, parecia que tinha uma TV fora do ar por perto - mas não havia nada. Foi ficando alto, mais alto, e mais alto, até que se tornou insuportável. E foi bem quando eu fiquei de frente para a porta. Me aproximei do olho mágico com as mãos frias e suadas, uma tremedeira por todo o corpo... Nunca havia me sentido daquele jeito. Não havia ninguém do lado de fora. Nada. Mas os sintomas permaneciam, não poderia estar tudo bem. Continuei olhando fixo para o lado de fora. Estava um pouco escuro, pois o clima estava nublado, com muito vento e nuvens escuras.
Como não tem nada? Então um vulto rápido passou em frente à porta, me fazendo dar um pulo pra trás. Senti um arrepio da ponta da coluna ao topo da cabeça. A maçaneta começou a ser girada com violência enquanto empurrões eram dados na porta. Um rastro de sangue escorreu do lado de fora para dentro. Comecei a gritar desesperadamente de medo. Minha mãe veio correndo e gritando, assustada. Desmaiei.

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[17]
"Filha!! Acorda!!" ouvi a voz da minha mãe, me acordando. Abri os olhos e vi o rosto dela com ar de preocupado, bem próximo ao meu.
-Eu... Eu tô bem mãe... - falei com voz fraca.
Ela se afastou um pouco e revelou doutor Júlio de pé, me observando. Dei um grito.
-Mas o que é isso, Tâmara? Pare já com isso! - minha mãe falou em tom grosseiro e alto.
Me levantei rapidamente e passei por eles, saí porta afora e comecei a correr pela calçada. Olhei rapidamente para trás e vi minha mãe gesticulando para eu voltar e o Júlio parado.
Apenas corri.
Cheguei com o rosto vermelho e lágrimas secas num posto de gasolina. Me faltava ar. Coloquei as mãos apoiadas nos joelhos e me encostei em um poste. Todos do posto olhavam para mim, enquanto eu tentava recuperar o fôlego. Não sabia mais o que fazer.
Ouvi um voz familiar vindo de longe, me chamando.
"Tâmara! Ai meu Deus!" a Virgínia corria ao meu encontro enquanto me chamava.
Ela me abraçou e perguntou o que estava acontecendo. Me levou para a lanchonete onde ela estava, me deu água. Eu falei que estava em perigo, que tinha alguém tentando me matar. Ela acreditou em mim...
-Tâm, vem, vou te levar para a Polícia. - Virgínia me puxou pelo braço em direção a um carro que estava estacionado meio longe das coisas.
Parou ao lado do carro preto, grande, com vidros escuros. Me pediu para entrar no banco de trás. Abriu a porta, ela parecia estar estranha. Deu uma leve puxada no meu braço para que eu entrasse mesmo. Eu olhava para ela com uma certa estranheza... Ela estava diferente do normal. Sentei no banco do carro e senti um cheiro forte de tabaco. Me lembrei do doutor Júlio no mesmo instante. Estava esboçando uma reação enquanto ela amarrava o cinto em mim.
-Virgínia, eu quero sair, pára. - falei pra ela.
Seu rosto resplandeceu pura maldade, como eu nunca havia visto. A falta de luz tornou seus olhos escuros e pude ouvir uma risada de deboche.
Ela me ignorou e fechou a porta com força.
Tentei me soltar do cinto, mas ele simplesmente não saía. Fui com mais força, mas a minha mão começou a doer. Bati no vidro enquanto gritava por seu nome. Agora estou sem saída, esqueci meu celular em casa. O carro afastado das pessoas não permite que eu seja ouvida. Pelo retrovisor eu consigo ver a silhueta de homem alto se aproximando do carro. Será o doutor Júlio?

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[19]
O que aconteceu? Como fui "dormir" e de repente acordei nessa escuridão? As últimas coisas que eu lembro foi de estar no carro, presa pelo cinto de segurança, enquanto um homem se aproximava. Ah... Esse homem... Eu o vi agora pouco em uma visão estranha... É como se fosse apenas uma foto, que sofre diversas interferências, mas o que mais me assustou foram os sussurros... Falando coisas que eu não consegui entender... Mas que pareciam machucar meu crânio... Pareciam querer me enlouquecer!
Aqui onde estou agora, ouço gotejar em uma poça próxima, o clima é úmido. Estou presa por alguma coisa, que parece ser um cano. O chão está sujo, talvez tenha algum tipo de lama. Me pergunto se estou no subsolo, no tratamento de esgoto, no metrô... Não sei como conseguiriam chegar a um escuro tão absoluto na superfície.
Sinto umas dores em algumas partes dos meus braços, talvez eu tenha sofrido algumas pancadas para ser colocada aqui. Ou sei lá o que eles fizeram comigo. Estou confusa, assustada.
Ouço o rangir de uma porta, o escuro continua absoluto. Passos suaves inundam o local. Pelo eco, não parece ser um lugar muito grande. Estou com medo de falar, acho que mesmo que eu tente, não vou conseguir... Fechei meus olhos - mas é como se estivessem abertos - tentei olhar para dentro de mim. Talvez a coisa a certa a ser dita pudesse aparecer em minha mente.
Uma gota caiu em minha boca, tentei expeli-la, mas o gosto forte de ferro não deixou dúvidas... O que estava gotejando era sangue.
-O QUE VOCÊ QUER DE MIM? - perguntei chorando.
Após uma leve risada de escárnio, ouvi a resposta:
-Eu quero seu sangue.

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[20]
Permaneci em silêncio. A pessoa prosseguiu:
-Você sabe porquê você está aqui? Sua imunda. Você é uma suja. Bruxa. - mais sangue foi derramado em meu rosto - Eu quero seu sangue na minha taça! 
Ouvi um som de objeto laminado, uma faca talvez. Engoli seco. O que eu poderia fazer agora?
-Ah, você não vai se defender?! Então diga suas últimas palavras.
Fechei os olhos e olhei para dentro de mim, tentando achar minha última salvação. A imagem do homem com uma luz por trás voltou à minha mente. Ouvi um barulho alto, era o rangir da porta mais uma vez. Uma luz forte foi acesa - e a minha visão estava se tornando realidade. A silhueta do homem apareceu em meio à luz, mas eu não consegui ver quem era.
-O que você quer aqui? Ela é minha! - o homem que ia me atacar falou para o que havia chegado.
-Socorro! Me salva, pelo amor de Deus, me tira daqui! - gritei desesperada, talvez esperando que ele fosse ser a pessoa que iria me tirar dali.
O homem que chegou desceu as escadas, chegou perto de mim. Eu estava soluçando, de medo e de lágrimas.
-Liberte-a. - era a voz do Doutor Júlio. Fiquei perplexa.
-Você está louco! - o primeiro homem gritou e levantou a faca, que gerou um reflexo. A lâmina desceu com velocidade e me acertou na barriga. O frio do aço congelou meus sentidos. Senti meu sangue jorrar e meu coração bater mais lentamente... Será que eu vou morrer?

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"Você pode me ouvir? Está consciente?" uma voz desconhecida e confortante soou aos meus ouvidos. Tentei abrir os olhos. Estava tudo embaçado. Eu ainda estava viva.
Forcei a boca para que saísse algum som, não consegui.
"Calma moça, você vai ficar bem. Estamos te levando para o hospital. A senhorita consegue entender o que estou falando?" a voz falou novamente. Eu movimentei a cabeça levemente, afirmando.
Eu entendi o que ele estava falando, mas não sabia o que estava acontecendo. Ouvi vozes, muitas vozes, uma multidão falando, gritando. Ouvi flashes, barulho de ambulância e polícia. Meu corpo fraco rendeu-se e eu voltei a dormir.
Em meu sonho eu ouvi a voz do doutor Júlio falando próximo ao meu ouvido: "Por muito tempo minha missão era te exterminar, mas eu mudei de ideia de última hora e isso custou a cabeça de um velho amigo... Para te lembrar de que você tem uma dívida comigo, eu escrevi algumas coisas no seu pulso. Espero que não se incomode. Eu voltarei para cobrar a dívida. Descanse até lá."
Abri os olhos com força, vi que já estava na cama de um hospital, sozinha. Através do vidro fosco da porta do quarto, eu pude ver que alguém acabara de sair do quarto. Não foi um sonho. Ele estava ali.
Olhei para meu pulso, uma gaze e esparadrapo cobriam algo. Puxei o curativo e vi os cortes de faca formando os números 2 - 18 - 21 - 23 - 15 - 19. 
A raiva subiu.
"Por quê você me salvou? Para me atormentar? Eu não pedi isso! Era melhor que tivesse me deixado morrer!" eu gritei, fora de mim.
A sombra voltou do lado de fora da porta. A maçaneta começou a ser girada. Senti a palpitação do coração nos meus olhos. A voz ecoou em minha cabeça:
"Hora de pagar sua dívida."


Um comentário:

  1. O seu conto é simplesmente:DEMAIS!Amei o modo em que vc fragmentou a narrativa. O que deixa o leitor sofrego pra ler atá o final.ótimo conto o seu.
    Obviamente, vc gosta de ler contoss de terror né? Então gostaria de convidá-la para acessar meu blog de contos e séries de terror e fantasia.Ficaria muito agradecido se vc o fizesse dando vossa opinião.Ultimamente estou com a série O Anjo caido.
    Para acessar minha page é só ir : raffaelpetter.blogspot.com

    Ah, estou te seguindo pq me identifiquei com seu blog.

    Abraços!

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