sábado, 27 de outubro de 2012

Conto "Ataque"




Este conto começou a ser escrito no dia 04 de setembro de 2012 e encerrou no dia 24 de setembro de 2012.

Um dia normal transformou-se em um pesadelo real para Miguel. Em meio à destruição e uma terrível doença, ele deve encontrar sua mulher e conseguir manter-se vivo. Mas será que é possível?


Chamada para o conto - experiência sonora





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Essa manhã acordei com dor de cabeça... Noite passada foi bem complicada para mim e para minha esposa, tivemos uma discussão feia. Começou com algo pequeno e se transformou em uma briga que já não tinha mais nada a ver com o que era inicialmente. Tanto que nem lembro o que causou.
Eu sei que não é o certo, mas dormimos sem nos falar. Acordei e não dei bom dia, nem encostei nela. Ela também me ignorou.
Vou deixar o clima ficar mais ameno para poder falar com ela, se não vai ser outra briga.
Agora estou na sala de aula dos pequenos, organizando as atividades de hoje. Sou professor de jardim de infância, amo crianças. Acho que elas são minha terapia, e provavelmente são elas que vão me fazer ficar melhor.
Já minha esposa trabalha no centro financeiro e administrativo da Metrópole - o que me faz pensar que talvez ela chegue pior em casa.
Vou resistir ao máximo de ligar para ela ou mandar mensagem, não sei se é bom mexer em onça brava, mesmo que seja com vara longa.
Bem, as crianças estão começando a chegar, vou recebê-las.

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[2]
Consegui: resisti e não liguei para a Bia.
Cheguei em casa mais cedo que ela e estava tirando os sapatos quando uma correspondência chegou pela porta. Era de uma clínica de exames e estava endereçada à Beatriz. Tentei não violar a carta, fui tomar banho, fiz um lanche, mas ela parecia gritar para que eu a abrisse. E foi o que fiz.
Não estava entendendo muito bem no começo, mas aí apareceu a palavra "Beta-HCG" e eu sabia que tinha coisa a ver com gravidez. Pouco tempo depois eu estava confirmando: a Bia estava grávida. Fiquei extasiado, senti meu corpo cheio de alegria, afinal, eu ia ser pai!
Nesse mesmo momento, a Bia chegou. Estava com a cara fechada e não me cumprimentou, passou direto para a cozinha. A segui e fiquei parado, perto da porta, escondendo a correspondência atrás de mim.
Ela estava bebendo água e tentando me ignorar, mas eu estava contente demais para ser ignorado.
-O que você quer, Miguel? - ela perguntou.
Abri um sorrisão e mostrei a correspondência. Ela se aproximou, pegou o papel e após terminar de ler, com a mão na boca ela me encarou. Estava esperando ela pular em meus braços para juntos comemorarmos, mas a reação que ela teve foi totalmente diferente da que eu esperava...
-SEU IDIOTA! - ela gritou e me deu um empurrão.
Fiquei sem reação.
-Como assim, Bia? - perguntei.
-Quem mandou você abrir MINHA correspondência, hein?! - ela fechou os olhos e respirou fundo - Quer saber?! Eu vou embora daqui!
-QUÊ?! Como assim?! Espera aí, não!! Você está grávida... - tentei pará-la, mas era inútil, eu não conseguia segurá-la forte com medo de machucá-la - Para onde você vai?
-Eu vou sair da cidade, vou para a casa da minha mãe! E não me procure, a gente precisa dar um tempo, Miguel!
Ela se trancou no quarto e não me respondia de jeito nenhum, apenas mandava eu calar a boca e ir para outro lugar. Pela manhã, ela saiu com as malas e disse apenas "tchau e boa sorte". Eu não estou entendendo nada...
Fui para a escola abatido, tentei ligar para ela dezenas de vezes, mas ela me ignorava...
Estou esperando um milagre acontecer... Ou pelo menos algo que possa pará-la.

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[3]
Era hora do lanche e eu estava na sala de descanso, olhando para o celular, esperando que ela me ligasse. Os professores estavam conversando também, rindo, batendo a colher do café na xícara, essas coisas que todo dia acontecem. De repente, todos ficaram em silêncio, apenas a TV emitia sons. Olhei por cima para ver o que era e parecia ser um plantão noticiário. Na tela, dezenas de homens do exército estavam fechando a saída da cidade e uma fila quilométrica de carros esperava, tentando passar.
-AUMENTA ESSA TV! - eu gritei, nervoso.
A televisão teve o volume aumentado e ouvi a repórter dizer:
"Estamos aqui na saída da Metrópole, onde dezenas de homens fortemente armados do exército formam uma barreira humana para que ninguém deixe a cidade. Até agora, ninguém quis se pronunciar sobre o que está acontecendo. Tentamos contato com o Comandante Geral Otávio Gross mas nossas ligações não foram atendidas. Os motoristas já estão impacientes, muitos estão buzinando e gritando para que a passagem seja liberada, mas os homens do exército não parecem se importar com os pedidos. Voltamos a qualquer momento com mais informações."
No último segundo da reportagem, eu consegui visualizar a Beatriz com os braços apoiados no teto do carro, com cara de impaciente. Aquilo me deixou muito nervoso...
O que estava acontecendo? Por que estariam impedindo a saída dos cidadãos da Metrópole?



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[4]
Tentei ligar para a Bia do celular da minha colega e ela atendeu. A ligação estava péssima, além do sinal estar ruim, havia muito barulho no local em que ela estava.
-Amor? Bia? Tá me ouvindo? O que tá acontecendo? - eu perguntei eufórico.
-Miguel? Eles estão fechando a cidade, não estão deixando ninguém sair... - ela parou por um segundo - tem um cara tentando passar por cima dos soldados com o carro! Ai, meu Deus!! - ouço som de tiros e gritaria do outro lado da linha - Miguel! Eles atiraram no cara! Acho que mataram, o que é isso que... - a ligação caiu.
Tentei desesperadamente falar com a Bia novamente, mas não havia mais sinal. Senti meu corpo formigar, minha cabeça latejou, comecei a entrar em pânico. Eu decidi ir para lá onde ela estava, para pelo menos convencê-la a sair de lá.
Mas foi só eu sair da porta da sala de descanso que percebi algo estranho no céu...

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[5]
Dezenas de aviões sobrevoavam o céu da Metrópole, pareciam ser aviões de guerra. As pessoas que estavam nas ruas ficaram assustadas, várias entraram correndo nos prédios que estavam por perto, outras vagavam sem rumo, olhando para o céu. Eu fiquei imóvel por um tempo, tentando entender o que estava acontecendo.
Atrás de mim, várias crianças choravam assustadas com a situação. Ouvi bombas - a agonia se generalizou. Gritos por todos os lados, minha mente estava embaralhada.
Ouvi me chamarem de dentro da escola, precisam da minha ajuda para controlar as crianças. Algumas ainda se escondem no jardim, precisam ser pegas para serem levadas para dentro. Estou confuso!
Volto para ajudar as crianças ou corro o mais rápido que puder para salvar minha mulher grávida?



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[6]
Voltei para o jardim da escola e coloquei várias crianças para dentro, isso me tomou uns 3 minutos. As bombas não paravam de cair, uma delas deve ter caído em um prédio aqui próximo, a mais ou menos uns 200 metros da escola. Uma nuvem cinza de poeira cobria a rua, a visão estava dificultada, até para respirar estava complicado. Mas eu precisava ver a minha mulher!
Peguei uma máscara de limpeza, tentaram me impedir de sair mas eu fui mesmo assim.
Cheguei na rua e tentei encontrar meu carro... Cadê?! Ele havia sumido do estacionamento! Olhei para os lados e achei um carro ligado e com a porta aberta... Nem pensei duas vezes. Entrei no carro e parti em direção à saída da cidade. Desviava de corpos, pedaços de prédios, pessoas correndo... Nunca achei que fosse ver com meus olhos cenas que eu vi em filmes de guerra.
No meio do caminho eu vi algo que me chocou: encostado em uma esquina empoeirada estava o corpo de uma mulher baleada e uma criança de mais ou menos 3 anos a abraçava, deveria ser o filho dela. Me deu um nó na garganta. Parei o carro próximo a eles, olhei ao redor, não havia soldados, a rua estava quase deserta. Desci correndo e agarrei o menino, que berrou, ficou chorando, não queria se separar do corpo da mãe. Puxei-o e o coloquei no carro... Ele chorava desesperadamente. Tentei consolá-lo enquanto dirigia e aos poucos ele foi se encolhendo e abafando o choro por entre as pernas.
Eu estava correndo como um louco pela cidade, com medo dos soldados me pegarem ou de um prédio desabar próximo a mim.
Ouvia a sirene de emergência sendo tocada (ela já havia sido acionada algum tempo antes das explosões começarem) e meu coração parecia que ia explodir junto com os prédios.
Em pouco tempo eu já estava em 150 km/h.
Um pedaço de um prédio caiu na frente do carro e eu não consegui desviar. Tudo ficou branco.

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[7]
Abri os olhos lentamente, o carro estava virado para cima e bastante danificado. Eu estava preso pelo cinto, com a cabeça apoiada de lado no teto. Conseguia sentir meus pés e minha respiração estava forte, assim como as batidas do meu coração. Ofegante, eu tentei me livrar do cinto de todas as maneiras, mas não estava conseguindo. Do lado de fora, um militar se aproximava. Não sabia se pedia ajuda ou se fingia estar morto, tive que escolher rapidamente: fechei os olhos e prendi a respiração. O soldado se aproximou do carro, se abaixou e olhou pra dentro.
-Civil, você está vivo? - ele perguntou.
Fiquei parado. Ele permaneceu me analisando por uns 10 segundos - pareceram uma eternidade para mim. Em seguida, ele se levantou e continuou andando. Respirei aliviado. Após várias tentativas, consegui me libertar. Com o pescoço extremamente dolorido e vários arranhões pelo corpo, me levantei. A cena que vi era inacreditável: prédio destruídos, corpos amontoados, aviões ainda jogando bombas em várias partes da cidade. Meu deus, o que aconteceu aqui?
Ouvi um choro de criança, olhei ao redor mas não vi nada. Aí me lembrei: eu estava com um menino no banco de trás do carro no momento do acidente! Me voltei para o veículo e ele já estava de pé, com os braços e as pernas machucadas por pancadas - apenas isso. Não havia arranhões, nem sangue. Abracei-o e senti o corpo frio. Rapidamente, olhei o banco de trás do carro e vi que havia vidro por todo canto - não tinha como não se cortar! Que estranho...
-Ei! - ouvi vozes me chamando de longe - Ei, civil! Pare!
Nem pensei duas vezes, agarrei o menino nos braços e corri o mais rápido que pude. Entrei em um beco por entre os prédios e a perseguição começou. Ignorava meus ferimentos e o monte de gente morta no caminho e ia em alta velocidade procurando um local para nos salvar. Dispararam tiros contra mim, mas de alguma maneira quase sobrenatural, eles não me atingiram. Já muito cansado e com início de câimbra nos braços, eu pensei em desistir. Para onde eu iria correr em uma cidade destruída e dominada por militares armados e raivosos?
-Ei, psiu - uma voz baixa chamava a minha atenção - aqui dentro.
Uma portinha de 1 metro foi aberta no meio do beco. Não consegui pensar muito, adentrei e comecei a chorar de desespero dentro do lugar escuro e fétido. Acho que estou em um pesadelo.



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[8]
"Ssshhhhiiiiuuu" mandaram eu me calar.
Meu corpo tremia de nervoso fazendo meus dentes trincarem repetidas vezes. Abracei o corpo do menino e senti a pele gelada da criança. Encostei o ouvido no peito dele e não ouvi batidas. Fiquei assustado, como essa criança teria morrido, assim, "do nada"?
Comecei a mexê-lo fortemente para ver se o "acordava" e foi aí que me surpreendi. A mãozinha pequena do garoto apertou meu braço, como quem pedisse para eu parar. Fiquei sem reação. Alguém acendeu uma fonte fraca e um pouco alaranjada de luz e eu pude ver uns dez rostos abatidos, com uma expressão fria, olhos arregalados. No menino eu via a mesma expressão.
"Oh, meu pai... O que é isso?"

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[9]
-Você está com medo? - uma voz masculina e rouca me perguntou.
Achei meio absurdo perguntar isso após eu ter visto aquela cena macabra.
-Mas é claro que estou assustado... - respondi.
-Eu não perguntei se você estava assustado... Eu perguntei se você está com medo - o homem retrucou.
Não tinha parado pra pensar sobre a diferença entre esses dois estados emocionais. Acho que se eu tivesse realmente com medo, eu teria fugido deles...
-Não estou com medo. - respondi, firme.
Uma luz forte e branca foi acesa, me fez ficar cego por um segundo. Aos poucos fui vendo onde estava e quem eram os donos dos rostos. Eram pessoas normais mas pareciam ter sofrido mutações... A pele deles aparentava estar muito fina pois era possível enxergar quase todas as veias maiores com muitos detalhes. Os olhos estavam realmente esbugalhados e no rosto uma expressão congelada. Fiquei confuso... Não os via respirar...
-Eu não estou entendendo... O que está havendo aqui? - perguntei.
-Nós também não sabemos... - dessa vez uma mulher com a voz severamente rouca falou- algumas horas atrás nós estávamos andando pela rua e de repente desmaiamos... Depois que acordamos, começamos a sofrer mudanças no corpo... Paramos de respirar...
-Como assim pararam de respirar? Como vocês estão vivos e falando? Isso não pode acontecer... - a interrompi, confuso.
-Você acha que já não nos cansamos de perguntar isso? - outro homem, que parecia ser mais jovem, falou - vi meu irmão ser esquartejado na minha frente porque estava com uma aparência igual a essa...
-Não estamos entendendo nada! Os militares estão matando todos à frente, sem explicações, sem misericórdia... - o primeiro homem rouco voltou a falar - e nós só fazemos ficar mais diferentes de um homem normal...
"Será que eu morri no acidente lá atrás e não estou sabendo ainda...?"
Meu celular começou a tocar, era a Beatriz! Atendi o celular rápido e afobadamente. No outro lado da linha, gritos de desespero e alguns tiros. Eu chamava o nome dela, mas não obtive respostas. "Me ajuda!!" ouvi o grito dela, e foi a única coisa que foi dita. A ligação caiu novamente.
"Eu não posso ficar aqui escondido com esse monte de defuntos falantes, eu preciso achar minha mulher e tirá-la dessa cidade maldita!"
Mas em que dimensão eu estou?!

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[10]
Isso tudo está muito surreal para mim, acho que não estou acordado, talvez nem vivo... Sabe aquela sensação de quando você está dormindo e no sonho as coisas acontecem de um jeito que parece ser de verdade e ao mesmo tempo você percebe que é mentira? Complicado, eu sei.
Mas se de alguma maneira isso tudo é real, eu vou sair daqui logo e tentar salvar minha mulher.
Coloquei o garoto sentado, me levantei e me posicionei para sair.
-Não! Não saia, você vai acabar sendo morto pelos militares! - alguém falou.
-E se eu ficar aqui, vai adiantar de quê? Vou acabar como vocês, morto de qualquer maneira! - talvez eu tenha sido muito rude, mas eu estava tenso - Eu preciso fazer algo enquanto meu coração ainda bate!
Comecei a forçar a portinha para abrir e foi quando uma voz que ainda não havia falado se pronunciou:
-Há uma cura.
Virei o pescoço e vi um homem de pele enrugada e cabelo grisalho e despenteado. O suor do rosto se misturou ao pó dos prédios e formou uma crosta de sujeira no homem. Parecia um mendigo.
-O quê? Como assim? - alguém perguntou para ele.
Eu estava nervoso e admito que estava sendo ignorante ao falar:
-Homem, eu não tenho tempo para perder! Não fique falando asneiras!
-Eu não estou falando asneiras! Há uma cura! Fui eu que inventei! - ele respondeu, se levantando do chão e mudando a expressão para uma raivosa.
Percebi que ele não estava doente como os outros, estava apenas muito sujo e cansado.
-Bem, se você tem mesmo a verdade, então me acompanhe e me explique toda essa situação. - eu o desafiei.
Ele aceitou. Deixamos os infectados lá e disse que não saíssem, pois estaríamos de volta assim que pudéssemos.
Agora eu preciso fazer três coisas: evitar de ser pego pelos militares, salvar minha mulher e ajudar esse velho louco a provar que o que ele está falando é verdade.
Temo que minha mulher possa já estar infectada... Ou até mesmo eu...

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[11]
A rua estava deserta, parecia haver um profundo silêncio envolvendo a cidade. Andávamos escondidos, suspeitando de todos cantos. Enquanto estávamos andando, eu perguntei para o velho:
-Então... Quem é você? O que está acontecendo? Vai falando...
-Meu nome é Gilberto Lyra... Eu era um grande geneticista no Instituto de Pesquisas de Transgênicos. Há alguns anos, minha equipe fez uma grande descoberta, mas não imaginávamos que traria consequências tão terríveis... Distribuímos algumas sementes alteradas geneticamente para que legumes passassem a ter mais qualidade nas cascas e fossem mais ricos em nutrientes, mas após meses que eles estavam em circulação no mercado da Metrópole, vimos um caso de mutação em humanos. Voltamos às pesquisas e descobrimos um terrível erro na construção genética das sementes, ao fim vimos que era apenas uma questão de tempo para que uma terrível doença se espalhasse entre a população até constituísse uma pandemia mundial - a voz dele ficou embargada - e foi aí os militares entraram... Apesar de eu afirmar que há uma cura, meus colegas não concordaram comigo e decidiram que a única maneira de evitar a pandemia era matar todos da cidade, já que não há como distinguir entre quem comeu ou não...
-Afinal, há cura de verdade?? - perguntei meio impaciente.
Uma sequência de tiros de metralhadora quebrou o silêncio, vários gritos de terror foram ouvidos. Não parecia estar muito longe de nós.
Nos abaixamos próximos a algumas latas de lixo, num beco entre prédios. Ficamos alguns minutos parados, eu um pouco mais a frente que o Gilberto. De longe eu observava a movimentação... Alguém entrou correndo no beco mas foi interrompido por um tiro nas costas. Me agachei mais ainda, com medo. O militar olhou ao redor, procurando por novas vítimas, mas ele não nos viu. Meu coração parecia estar com o tamanho dobrado, a sensação era de que não ia mais caber no peito. Assim que o militar foi embora, eu corri para ver como estava a pessoa que levou um tiro. A mulher parecia estar num estágio avançado de mutação: a pele estava tão fina que parecia que ia sumir a qualquer momento, várias feridas cobriam o frágil corpo daquele ser e o olho estava extremamente esbugalhado e vermelho. Ela ainda respirava.
-Não há mais o que fazer - disse o Gilberto - ela está chegando ao fim das mutações, vai morrer de qualquer jeito.
-Você disse que há cura!
-Não para quem está nesse nível...
A mulher deu o último suspiro. Fiquei imaginando minha esposa sofrendo o que aquela mulher sofreu, engoli seco de medo. Não posso deixar isso acontecer a ela...
-Rapaz, - Gilberto chamou minha atenção - precisamos ir ao Centro da Metrópole, é lá que está o antídoto.
-Mas a minha mulher está na saída da cidade!
-Não temos tempo a perder, os militares fecharão os portões do IPT em vinte minutos! - Gilberto falou, um pouco desesperado - Rapaz, se você não vier comigo, eu vou sozinho... Estamos condenados!
E agora: corro para encontrar minha mulher ou vou com o Gilberto atrás dessa cura?!

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[12]
Ouvimos a sirene de tragédias tocar novamente. Entrei em desespero.
-Eles vão realmente trazer a bomba HJX-302, não acredito... - Gilberto falou.
-Ã? Do que você tá falando? - eu perguntei.
-Rapaz, eu te falei que eles não acreditaram na cura, mas foi só para a massa... Os militares maiores, cientistas, políticos superiores e grandes empresários da Metrópole foram vacinados e estão sendo levados para longe da cidade através do metrô dos militares... Eles vão explodir tudo com uma arma de destruição em massa em uma hora... E vão me deixar...
Não pode ser verdade... Não...
-Por quê eles vão te deixar?! - fiquei confuso, afinal, não foi ele que descobriu a cura?
-Porque eu fui o único que afirmou ser possível curar a cidade, e os cientistas maiores que eu não gostaram de ser desmentidos para toda a comunidade científica da cidade... Fui surrado e jogado na sargeta pelos meus ideais... - ele parou de andar, se apoiou numa parede, colocou uma mão no coração - Jovem... Eu não estou bem... Meu coração... Eu tenho problemas cardíacos...
"Era só o que me faltava, ele me abandonar também!"
-Quê? Não! Como assim?! O que o senhor quer que eu faça? - perguntei.
-Meu jovem... - ele caiu no chão, sentado, com a cabeça olhando para o céu - Eu não tenho muito tempo, minha luta é vã... - ele tirou uma chave e um cartão do bolso e me entregou - Vá até o IPT e pegue o frasco com o nome Pesquisa 57, dê para você e para sua esposa quando a encontrar e corra para longe daqui! Salve-se!
Gilberto começou a se contorcer de dor. Militares perceberam o movimento. 
Agora estou só e com uma missão quase impossível... Correndo por entre prédios destruídos e corpos, numa cidade fantasma...

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[13]
Corri tanto que está não parecia ser possível segurar minha respiração ofegante. Sentia que iria desmaiar a qualquer momento...
Me encostei em uma parede, num lugar um pouco escondido, para retomar o fôlego. Confesso que me belisquei para ver se tudo não passava de um sonho ruim.
Ouvi uns grunhidos atrás de mim, numa distância considerável. Era estranho, parecia ser de um monstro, daqueles de filmes. Me virei e vi um soldado com uma máscara, a arma estava abaixada, sua respiração estava forte e ofegante como a minha. Ficamos parados, um de frente para o outro, por mais ou menos uns 10 segundos. Aos poucos eu comecei a ver sangue escorrendo pelas pernas dele. Longos caminhos daquele líquido vermelho quase vinho percorriam até chegar ao chão. Franzi a testa e perguntei se ele estava bem, como resposta, ouvi outro grunhido. Ele soltou a arma, caiu de joelhos e arrancou a máscara. O rosto estava em carne viva, não havia mais pele... Fiquei horrorizado... Não consegui ajudar aquele homem, acho que não havia mais saída para aquele ser moribundo. Dei dois passos para trás, ele estendeu a mão até mim e finalmente caiu, morto. Corri, corri mais do que antes, e chorei por vários minutos. Chorei porque me senti um inútil diante da morte de várias pessoas, chorei porque imaginei minha mulher sofrendo tudo aquilo e eu nem pude dizer "eu te amo" ou "me desculpe"...
Finalmente cheguei ao IPT. Não foi necessário usar o cartão para validar a entrada, as portas estavam arrombadas e eu entrei facilmente. Passei por corredores escuros, com luzes piscando, marcas de sangue nas paredes, alguns corpos em carne viva apodrecendo pelos cantos... As lágrimas escorriam incansavelmente.
Procurei o local indicado no cartão e achei um armário com o nome do Gilberto. Passei o cartão e o armário se abriu, mas o que eu vi ali dentro me deixou petrificado...



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[14]
Um espelho... Um simples espelho que me deixou em total desespero...
Nele havia o reflexo de um homem de olhos grandes e pele fina, não consegui associar aquela imagem à minha. Fiquei atônito...
Lembrei das palavras do Gilberto... "Estamos condenados".
Recuperei o controle de mim mesmo, precisava continuar com minha missão.
Perto do espelho, havia um frasco pequeno com o nome "Pesquisa 57". Eu o peguei e fechei o armário, tinha que sair logo dali, mas ouvi passos lentos em algum corredor próximo. Para onde eu iria? Eles estavam vindo exatamente de onde eu precisava ir, que era a saída.
Olhei ao redor, vi uma porta e entrei rapidamente por ela. A sala era grande e havia uma extensa parede de vidro que permitia ter ampla visão da cidade, já que eu estava no sexto andar. Confesso que me passou pela cabeça pular e acabar logo com esse inferno... Mas a imagem da Beatriz em minha cabeça me fez seguir em frente. Fiquei quieto dentro desse lugar, esperando que o dono dos passos fosse embora. Ele se aproximou da sala e não parou em frente à porta, continuou seguindo o corredor.
Mas, para complicar minha vida, me veio uma crise de tosse, dessas que não dá pra segurar.
"Droga, agora ele vai voltar."
De fato, o dono dos passos parou e voltou para perto da porta. Quem será essa pessoa? E se for um militar, para onde eu vou agora? Estou sem saída!

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[15]
Fui para trás da porta e fiquei esperando para conseguir fugir quando ele entrasse. A porta foi aberta lentamente e permaneceu assim, por um tempo, sem que nada fosse feito ou dito. Já estava ficando nervoso, minhas mãos (agora com a pele cada vez mais fina) suavam muito.
Já estava há uns 3 minutos sem acontecer nada então eu me arrisquei: dei um leve empurrão na porta e não vi movimento algum. Saí de onde estava e noticiei que não havia ninguém por perto. Se houve, foi embora. E eu também tenho que ir.
Comecei a descer as escadas correndo e foi quando comecei a sentir uma dor muito forte nas pernas, como se elas estivessem se enfraquecendo. Parei no segundo andar e tomei um gole do líquido que estava no frasco - não sei se foi o suficiente, espero que sim...
Continuei correndo e quando cheguei no térreo, próximo à saída, vi uma silhueta de uma mulher que se arrastava, segurando-se nas paredes para não cair.
-Bia?! - eu perguntei, com medo de que fosse ela naquele estado... Mas torcendo para que fosse - É você?

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[16]
-Miguel... Eu te achei... - era a Bia, e ela estava ferida.
Corri ao encontro dela, enquanto ela ia ao chão. Abracei-a e chorei de felicidade, achei que nunca mais fosse vê-la. Peguei o vidro com o antídoto e quando estava abrindo ela me perguntou o que era.
-É a nossa salvação, isso vai te curar! - respondi.
Ela empurrou a minha mão com o frasco.
-Tem algo que eu preciso te dizer antes, Miguel... Eu não mereço esse líquido... Eu sou uma monstra...
-O quê? Do que você está falando, Bia?
-Eu... - ela parou para respirar e colocou a mão sob o ferimento de bala que havia no quadril.
-Vamos Bia, beba logo isso, pelo amor de tudo que é sagrado, beba! - coloquei o frasco na boca dela, mas ela empurrou com força e o frasco voou longe, mas não quebrou.
Olhei surpreso pra ela.
-NÃO! Não quero beber isso! Eu não mereço viver! - aqueles olhos grandes e pele fina lembravam vagamente a Bia raivosa que me abandonou pela manhã - E sabe porquê eu não mereço? Porque esse filho não é seu!
Se ainda restava algum chão no meu mundo, ele se foi. Fiquei boquiaberto, olhei para ela, olhei para o chão. Me senti envergonhado, de alguma maneira. Ela chorava copiosamente.
-Vá embora... Saia daqui, por favor, me deixe morrer... - sangue começou a escorrer dos olhos dela.
A sirene das catástrofes tocou novamente. Faltavam poucos minutos para que tudo fosse explodido, como o Gilberto previu. Vários militares apareceram não sei daonde e corriam pelas ruas em direção à saída da cidade. A essa altura, acho que eles não se importavam mais em matar pessoas, mas em salvar as próprias vidas.
O que eu faço agora?


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[17]
A suspendi e coloquei-a em meu ombro direito. Ela se debateu um pouco e disse que eu tinha que deixá-la, mas não a soltei. Fui para a rua correndo, em meio a outras pessoas que, desesperadas, corriam também. Alguns, afetados pelas mutações, tentavam fugir sem destino, segurando-se em qualquer coisa que os suportasse.
Fui o mais rápido que pude, mesmo depois de sentir dores terríveis em minhas pernas após uma longa câimbra.
Quando dei por mim, eu já estava próximo à saída da cidade e apenas alguns metros nos separavam de nossa salvação.
Um barulho ensurdecedor veio de trás de mim, na cidade, me levando ao chão. Vários prédios começaram a explodir no centro da Metrópole. Tentei me levantar mas minhas pernas endureceram. Beatriz, que estava há pouco tempo desmaiada, abriu os olhos e nós nos entreolhamos profundamente. Mais uma lágrima escorreu dos olhos dela e enquanto ela dizia adeus.
Gritei o mais forte que consegui, mas fui abafado pelo som das explosões. Um forte calor se aproximava de nós, e eu ainda tentava me levantar. A visão foi ficando turva e meu corpo mais fraco. Senti meus sinais vitais se esvaindo. Me arrastei até que alcancei as mãos da Beatriz. Ela ainda estava viva!
-Bia, fala comigo, não vai embora...
Mas não foi o suficiente para que ela abrisse os olhos. Me rendi, não havia mais para onde ir ou o que fazer. Fechei os olhos.
De repente, senti meu corpo sendo puxado para fora da cidade, mas não consegui ver quem me puxava. Vi que a Bia também estava ao meu lado. Em meio à fumaça eu tentava identificar quem nos salvava, mas era impossível.
Talvez não seja nosso fim.

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[18]
Quando consegui recuperar minha consciência, consegui ver quem havia nos salvado.
-Gilberto...? - perguntei, forçando a vista para ver claramente, através da fumaça - Pensei que estivesse morto...
-Bem, apesar de ser o que muitos esperam, não foi dessa vez. - Ele riu.
Me arrastei até a Bia, que estava deitada, viva, mas desmaiada.
-Garoto, dei o conteúdo do frasco para sua mulher. Mais um pouco de tempo e ela não teria mais salvação. - ele falou.
Respirei aliviado. Me virei e vi o que restou da cidade tomada por pequenos incêndios, muita fumaça e pó.
-E agora, Gilberto? - perguntei.
-Agora, vamos em frente. Essa será em breve apenas uma cidade que nunca existiu. Um lugar cheio de mortos que nunca viveram. - ele respirou profundamente, seguido de uma tosse - Vamos, vamos embora.
Nos levantamos, peguei a Bia nos braços e segui.
Sem rumo, sem esperança.
Só me sobrou o sangue correndo nas veias e as lembranças de atrocidades de uma guerra... Os mortos, o desespero, a dor.










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