quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Conto "1925"


Este conto começou a ser escrito no dia 20 de agosto de 2012 e encerrou no dia 01 de setembro de 2012.

Era para ser apenas um trabalho de inspeção em mais um hotel abandonado, mas virou um pesadelo que pode ter um final trágico para Flávio.


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Essa semana fiquei sabendo que fui o escolhido pela agência de recuperação de imóveis para mais um trabalho...
Eu e um parceiro vamos ter que fazer a avaliação completa de um prédio antigo para que a empresa para a qual trabalhamos possa restaurá-lo. Tem uma grande rede hoteleira que quer tornar o lugar num lindo local vintage para clientes exclusivos.
Não vamos poder desapontar os nossos chefes, ainda mais por causa do dinheiro envolvido.

Nossa viagem para o local está marcada para amanhã, pela madrugada e voltaremos no dia seguinte, pela manhã. Vamos num trailer, com motorista... Viagem de 4 horas e meia.
Tem tudo para ser mais uma viagem normal, já fiz outras 13 desse tipo. Porém, ouvi uns cochichos pela empresa de que esse prédio não é como os outros... Não soube o porquê... Talvez eu devesse investigar.


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[2]
Peguei dois colegas meus de trabalho conversando no bebedouro, em baixo tom. Ouvi quando um deles falou: "Tá louco que eu não aceitaria ir... Nem por toda grana do mundo... Mas parece que eles não estão sabendo de nada não, cara...". Intrigado e querendo entender o que estava acontecendo, apareci de supetão no local. Eles deram um pequeno pulo pra trás, realmente não esperavam me ver ali. Rapi

damente o mais afoito buscou um tópico aleatório para mudar o assunto.
-Não, não precisam mudar de assunto porque eu cheguei, podem continuar a falar sobre o que estavam conversando... - falei irônico.
Eles se entreolharam nervosos e um deles saiu dizendo que precisava ir urgente no almoxarifado. O outro mostrou certa decepção no olhar o ver que o companheiro o abandonou. Dei um passo pra perto dele e o deixei sem saída.
-Olha Flávio, a gente não queria ficar te contando essas coisas porque nem devem ser verdade! Além do mais poderiam abalar seu psicológico e te fazer desistir dessa oportunidade! - ele falava enquanto eu sentia um tom de desculpa esfarrapada no ar.
-Dá pra me falar logo o que é que há de tão grandioso nesse lugar? - na verdade foi mais uma ordem do que um pedido.
Ele revirou os olhos e falou:
-Aquele prédio é cheio de sobrenatural, Flávio. Bom, o hotel 5 estrelas Great Look começou a ser levantado em 1910 por uma empreiteira rica da França. O prédio foi construído por mais de 1500 trabalhadores e, durante as obras, mais de 1000 morreram de causas absurdas no local. Os que sobraram ficaram psicologicamente incapazes de trabalhar novamente, mas nunca abriram as bocas pra falar o que houve de verdade. Após o hotel funcionar por 5 anos e trocar de administração mais de 50 vezes nesse período, ele foi completamente fechado e abandonado em 1925. Desde então, consolidou-se a lenda de que aquele local é regido por forças sobrenaturais - e não reage bem a visitantes. - ele falou com medo na voz.
Sou o tipo de cara cético até VER as coisas com os próprios olhos, ou seja, não sou facilmente impressionável. Fui ríspido na resposta.
-Sério que vocês estão se escondendo nos corredores para ficar falando essas besteiras?! Ah, me dá licença que eu preciso me preparar para viajar. Tenha um bom dia.
Vim para casa pensando no quanto a mente humana gosta de culpar o "sobrenatural" por tudo que não consegue entender.
Vou dar uma descansada e logo mais vou viajar para lá.





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[3]
Dormi quase a viagem toda, acordei quando passávamos por uma estradinha esburacada e apertada.
"Olha Flávio! Vem olhar essas placas!" o Trajano, meu colega de trabalho e parceiro nessa missão, me chamou para ver algo do lado de fora. Me
aproximei do vidro e vi várias placas seguidas. Eram rústicas, algumas feitas de madeira, outras feitas de outras placas velhas. Nelas estavam escritas súplicas como "não sigam", "voltem para suas casas", "por favor, não vá em frente" e até desenhos de caras raivosas ou com medo. Ri com ar de deboche, ao contrário do Trajano, que deixava transparecer certo temor. O trailer parou, bati no ombro do colega e disse para ele relaxar, era provavelmente apenas brincadeira de moleques.
Eu havia visto algumas fotos do local antes, mas não tinha noção do tamanho: é gigante. Fiquei impressionado com a forma que ele foi abandonado, afinal, se reconstruído, pode ser um local promissor.
Bem, vou pegar o meu material e começar o trabalho!


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[4]
Entrei pelo grande portal principal do prédio, o som dos meus sapatos no assoalho ecoavam pela sala inteira. Era tudo muito grandioso e apresentava uma temperatura baixa - mesmo com o tempo quente do lado de fora. Trajano vinha logo atr
ás de mim e olhava para os cantos desconfiado, um pouco medroso, eu suponho. Fiz uma brincadeira com ele para que relaxasse, mas ele continuou tenso.
-Bem, vamos nos dividir... - eu comecei a falar.
-Não! Dividir não! - Trajano falou meio desesperado.
Eu dei uma risada daquela cena. Fui me afastando dele e disse pra ele não me seguir, afinal, se a gente ficasse junto iria demorar mais naquele lugar, certo?
Me encaminhei para o primeiro andar, estava subindo as escadas quando ouvi passos próximos.
-Trajano, já falei para você ir pra outro canto! Não me segue... - falei e fui me virando para trás, mas não vi ninguém por perto - Haha, muito engraçado! Boa tentativa, Trajano!
Me virei para frente e continuei subindo. Dois segundos depois ouvi passos fortes de alguém correndo, voltei-me rapidamente para trás e novamente não vi nada. Intrigado, desci as escadas e fui andando para o outro cômodo, um grande salão, para ver se eu encontrava o Trajano. Ao chegar no local, apenas o vento forte se fazia presente. As sombras no cantos das paredes poderiam facilmente mexer com a imaginação de alguém. Deixei pra lá me virei para voltar para as escadas, e foi quando levei um susto ao ver o Trajano logo atrás de mim, me encarando, parado.
-Ué, tá assustado, Flávio? - agora era ele que debochava de mim.
Deixei ele rindo e fui para o primeiro andar.
Coisa esquisita...





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[5]
Cheguei ao primeiro andar. Eu tenho que dizer que realmente é estranho como a temperatura é baixa dentro desse hotel. Comecei a fazer medições e a usar alguns de meus aparelhos de trabalho. Um deles mede a qualidade da parede e outro, através de ondas, faz um mapa digital detalhado do local. Liguei os dispositivos e fui para outro ambiente, para que eles fizessem o trabalho sem minha interferê

ncia. Após alguns minutos os objetos apitaram, avisando que o trabalho deles havia sido concluído. Observando os resultados, notei uma coisa estranha... Havia uma certa parede a qual um aparelho afirmava ser muito fina e possivelmente frágil e o outro aparelho mostrava ter objetos não identificados num pequeno vão entre esse cômodo e o outro no qual eu estava esperando. Franzi a sobrancelha pois não havia motivo para haver um vão no meio das paredes. Fui para o portal que dividia os dois ambientes e percebi que a parede era deveras grossa demais para ser normal. Me aproximei da madeira que cobre o portal, ela estava inchada e podre. Vi um pequeno buraco e coloquei o olho ali, para enxergar dentro do vão. A pequena luz que vinha de um rombo na parede externa criava alguns contornos difíceis de identificar...
Me afastei e dei alguns socos com a lateral da mão. Ouvi uns estalos e a madeira começou a se quebrar.
Droga!
Dei um passo para o lado e várias coisas empoeiradas começaram a cair e empilhar do lado de fora. O eco fez minha cabeça doer.
Quando a poeira baixou eu consegui ver... Eram restos humanos... Dezenas deles... Enchiam o vão em uns 2 metros.
Levei a mão à testa e esfreguei os olhos... O que eu faço com esse monte de ossos?!
Um pouco atordoado, olhei ao redor com atenção e pude ver, em pequeno tamanho, algo escrito debaixo da janela.
"TE DEVORA"
"Mas que pivetes idiotas... Invadem o local para ficar pixando..." pensei.
Ainda não sei o que fazer com essa ossada empilhada entre um cômodo e outro! Tento colocar de volta no vão ou vou avisar ao Trajano?






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[6]
Chamei pelo meu colega, o meu grito ecoou pelas paredes velhas do hotel e não recebi resposta. Chamei outras duas vezes e não obtive resposta novamente. Comecei a fazer o trabalho sozinho mesmo. Depois de 20 minutos eu consegui colocar a tudo de volta no vão - ainda ficou o buraco na parede, deixando a mostra toda a ossada.
Bem, tinha que continuar o trabalho.
Fiz o mesmo procedimento com os

aparelhos nos outros 6 cômodos do andar. Mas notei que estava tudo silencioso demais. Nem ouvia o apito dos aparelhos do Trajano funcionar. Já chegava próximo ao meio dia, minha barriga pedia comida. Arrumei minhas coisas e desci para o térreo. Tudo estava deserto, nem o trailer estava mais lá. Era só o que me faltava... Fui de cômodo em cômodo procurando detalhadamente pelo Trajano, mas não o achava. Aí então observei que havia um local onde havia uma porta velha e inchada. Ela parecia ter sido aberta há pouco tempo... Empurrei-a e estava tudo muito escuro, não havia uma janela sequer. Peguei a minha lanterna e liguei. Fiquei em choque ao ver o corpo do meu colega pendurado, enforcado, balançando. Coloquei a mão no peito, dei um passo para trás e limpei os olhos. "NÃO PODE SER, DEVE SER MINHA IMAGINAÇÃO!"
Olhei novamente e... Não estava lá. Não havia mais nada. Talvez nunca houvesse.
Meu coração pulava dentro do meu peito... Que pegadinha foi essa que minha mente aprontou comigo?
Me virei e gritei de susto. Lá estava novamente o Trajano parado, me encarando, com um leve ar de riso.
-Cara, você precisa parar com isso! - falei pra ele, retomando o fôlego.
-Achei que você não tivesse medo desse local. - ele falou, em tom irônico.
-Eu não tenho medo, eu me assustei! Foi essa sua cara feia que me assustou, tá certo? - retruquei. Era só o que faltava, ele duvidar da minha coragem.
O trailer estava de volta lá fora, eles haviam saído para comprar o almoço.
Comi com aquela imagem sinistra na cabeça... O Trajano morto... Parecia tão real.



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[7]
Almoçamos do lado de fora do trailer, em uma sombra, levando um vento. Do lado de fora daquele prédio a vida parecia mais bonita, não queria ter que voltar pra lá...
Mas olha só o que estou pensando...
Estávamos prestes a voltar ao tra
balho quando vimos alguém sair correndo do hotel para a igrejinha que fica próxima ao local.
-Tu viu isso, cara? - o motorista perguntou.
Concordamos e saimos correndo para ver quem era. O percurso era um pouco longo e o motorista, Jorge, acabou se cansando, por causa do peso. "Vão, qualquer coisa gritem!" ele falou, enquanto parava e se apoiava nos joelhos.
Trajano foi um pouco mais rápido que eu e chegou na frente. Ficamos de frente para a entrada, antes de passar nessa espécie de ponte.
-Vai, Flávio. Tu é mais corajoso que eu... - ele me pediu.
Já não sei se concordo tanto com essa afirmação, minha mente tem pregado peças.
Fui caminhando em direção à escuridão da igrejinha. Perguntava se havia alguém ali, dizia que nós não queríamos machucar, que éramos amigos. Não houve resposta. Procurei minha lanterna no bolso e não achei. Droga...
Estava bem de frente para a entrada. Ouvi uma respiração forte lá dentro.
-Tu estás ouvindo isso, Trajano? - perguntei.
-Essa respiração? Sim... - ouvi ele engolir seco - Tu não vai entrar não, Flávio?
Revirei os olhos. Ouvia os batimentos do meu coração fazendo ecos na minha cabeça. Gritei mais uma vez pela pessoa que possivelmente estava ali dentro, e nada.
-Vai, entra! - trajano falou já me empurrando.
O empurrão foi forte e me fez ficar com raiva dele.
A temperatura dentro do local era fria como a do primeiro andar do hotel. Fiquei temeroso de falar alguma coisa. Mas falei, e foi aí que ouvi vários ruídos finos - e dezenas de morcegos começaram a voar e a bater em mim. Gritava desesperado, já não conseguia mais enxergar a saída. Senti uma mão extremamente fria me puxando para um lado, não sabia para onde era. Puxei meu braço e senti uma mão quente me puxando para outro lado. Dessa vez eu ouvi a voz do Trajano me acalmando - finalmente cheguei ao lado de fora novamente.
-VOCÊ É LOUCO, SEU IDIOTA?! - me exaltei com o Trajano. Saí de lá pisando forte, sentindo dores no meu pulso.
Mas que diabos foi aquilo?!


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Se possível, ouçam a música enquanto estiverem lendo esse texto!
[8]
Peguei meu material e voltei para o prédio. Estava bufando de raiva, o que deu na cabeça do Trajano para me empurrar para dentro daquele lugar?!
Subi as escadas para o segundo andar e era ainda mais frio que o primeiro. Em pouco segundos eu já estava batendo os dentes...
Notei que havia uma leve névoa no lugar. Ignorei tudo isso e comecei meu trabalho.
Após realizar o procedimento padrão em dois cômodos, cheguei em um no qual havia um velho piano, coberto de pó e todo arranhado.
"Mas como assim, um piano?!"
Cheguei mais perto, levantei a parte que cobre as teclas e vi outra mensagem.
"TE ENLOUQUECE"
Mas que desperdício de tinta... Vândalos... Estragaram as teclas do piano.
Comecei o trabalho nesse cômodo também. Arrumei os aparelhos e fui para outro lugar, para eles poderem trabalhar. Estava mais ou menos no meio do tempo para ficar pronto quando ouvi uma música de dentro daquele quarto. Era o piano, tocando uma música que eu nunca havia ouvido anteriormente. Uma forte chuva começou a cair.
"Mas... Não havia ninguém naquele quarto..."
Esperei o trabalho terminar e entrei no quarto. Olhei para dentro do lugar, vi o piano ser tocado como se houvesse alguém lá... Mas não há. E ele não é do tipo que toca sozinho. Me aproximei totalmente chocado. Mais uma vez esfreguei os olhos para ver se o que eu estava vendo era verdade e quando abri os olhos novamente, vi uma mulher com um véu preto e um vestido longo e escuro. Os dedos finos dançavam pelo piano enquanto tocava. Estava boquiaberto, observando-a.
A música terminou e ela olhou para mim, ou pelo menos a cabeça estava virada para mim. Dei dois passos para trás, ela me seguia com a cabeça. Corri para outro quarto, o mundo girava.



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 [9]
Desorientado e sem saber em quê acreditar, fui andando rapidamente até uma varanda que estava coberta pela névoa. Não parecia estar chovendo mais, mas o ar estava muito úmido, me fazendo lacrimejar bastante.
A visão estava muito turva,
não estava me localizando direito. Já nem parecia se era o mesmo lugar de alguns minutos atrás. Comecei a tremer de frio. Por trás de uma das colunas eu observei uma figura estranha, parecia ser uma criança brincando.
-Ei, garoto! - gritei.
Na hora eu não me toquei de que era impossível haver alguém ali, não havia antes, não há agora. Mas como eu disse, tudo estava muito estranho...
Com os braços entrelaçados para me aquecer, eu fui me aproximando e forçando a visão para enxergar em meio àquela confusão mental.
"Acho que isso aqui realmente enlouquece..."
Entre uma piscada de olho e outra, a criança sumiu.
"Eu só posso estar ficando louco."
Me virei para voltar para dentro do prédio e na porta estava parada a mulher de véu. Resolvi enfrentá-la, afinal, era apenas coisa da minha cabeça. Fui correndo em direção à ela e a empurrei. Ela caiu no chão, eu fiquei em cima dela, socando a cabeça e gritando.
Foi aí que ouvi a voz do Trajano pedindo por socorro. Parei de bater na figura, fechei os olhos por dois segundos e quando abri, vi que estava em cima do Trajano, que estava com o rosto ensanguentado.
-VOCÊ ESTÁ LOUCO? - ele gritou - Vim aqui te pedir desculpas e você vem me encher de porrada?
Olhei ao redor, estava tudo normal. Nem havia chovido, não havia névoa e muito menos uma mulher de véu.
Me afastei do Trajano e desci correndo as escadas, acho que preciso tomar uma água.



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[10]
Comecei a descer as escadas, mas quanto mais eu descia, mais parecia ter andares para passar. Olhava para baixo e ficava atordoado com a altura. Comecei a ficar tonto e cambaleava para os lados. Parei um um certo andar e me apoiei na m
ureta da escada com a cabeça apoiada nas mãos, tentando reaver o controle de mim mesmo.
"Mas que droga é essa? Será que eles colocaram veneno naquele almoço?" me perguntava.
Estava prestes a continuar tentando sair dali quando uma mão brutalmente forte começou a empurrar minha cabeça para baixo, me forçando a cair pelo vão da escada. Me segurava na parede, tentava alcançar quem me empurrava, mas todas as tentativas eram vãs. Gritei e me debati até que minhas forças foram se esvaindo. Senti minha energia vital acabando, meu corpo foi ficando leve, fechei meus olhos e fui me jogando em direção ao abismo.


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[11]
Senti uma mão me puxando de volta - era o Trajano, que gritava para que eu voltasse à consciência.
Ainda tonto, sentei no chão e fiquei estático, em choque, sem conseguir dizer uma palavra sequer.
Trajano estava no celular, tentando falar com alguém do escritório, mas parecia que não estava conseguindo.
Minhas pálpebras foram ficando pesadas, aos poucos eu fui adormecendo. Como num susto, acordei com o coração acelerado e a respiração forte. Já era escuro, eu estava na mesma posição de quando dormi. A única iluminação que havia por perto era a da lua. Após alguns minutos recuperando a força, consegui me levantar. Me segurando pelas paredes eu fui em direção à janela que dá para a frente do hotel - era possível ver o trailer parado, todo apagado, do lado de fora. Nada além disso.
Olhei ao redor, tudo estava muito silencioso, até demais. Tentei usar o celular, mas estava sem sinal. Gritei pelo Trajano e pelo Jorge mas só ouvi a reverberação dos meus gritos pelas paredes.
Olhei de volta para o lado de fora e vi um vulto se movimentando lentamente no jardim, parecia mais estar dançando entre o mato e o trailer.
"Eu ainda devo estar sob efeito de alucinógenos que colocaram na minha comida..."
Bem, e agora, o que eu faço? Procuro meus colegas primeiro aqui no prédio ou vou ao trailer atrás de informações? Eles não parecem estar aqui dentro.





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[12]
Senti meu corpo formigando e um queimor na espinha. Me virei e da escuridão eu consegui distinguir um contorno. Era a mulher de véu, parada na escada que dá para o andar de cima, me olhando. De algum modo eu não senti medo dela.
Dei passos largos em direção à mulher e bem próximo à ela eu parei, olhei para a altura dos olhos e falei:
-Eu não tenho medo de você, sabe porquê? Porque você não existe.
 Fui caminhando para a escada que dá para o térreo e ouvi ela dizendo: -
Só porque você não acredita em mim, não quer dizer que eu não exista.
Me virei para ela, o véu estava mais curto e deixava à mostra a boca e um pequeno sinal próximo a ela. Ela continuou:
-Afinal de contas, como você sabe que existe?
 Dei uma risada.
-Eu existo porque eu estou vivo! - respondi.
-Tem certeza? - ela perguntou maliciosa, com um sorrisinho fraco.
Engoli seco, nunca me fizeram essa pergunta. Muito menos uma mulher que eu acredito ser fruto da minha imaginação. Olhei para minhas mãos, elas não pareciam estar muito diferentes de algumas horas atrás. Olhei de volta para a mulher, mas ela já não estava mais lá.
Eu estou louco.
Continuei meu trajeto até o trailer.


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[13]
Senti uma atmosfera diferente no térreo. Uma neblina azulada pairava pelo local e me dava uma sensação de aperto no peito. Parecia que coisas horríveis tinham acontecido nesse local, coisa que eu não havia sentido antes.
Saí do prédio, fui caminhando até o trailer, que estava sem luzes acesas. Olhei através do vidro, vi os pés de um dos meus colegas, provavelmente dormindo. Tentei abrir a porta, mas ela estava trancada. Forcei-a a ponto de fazer o veículo todo se mexer. Nada aconteceu. Achei estranho eles não acordarem mesmo depois de eu ter movimentado eles daquele jeito. Comecei a bater do lado de fora do trailer. Cada vez mais forte e intensamente, com os dois punhos fechados, até chutes eu dei. Eles continuaram dormindo.
Comecei a pensar que eles talvez não estivessem apenas dormindo...
Peguei uma pedra e mirei no vidro frontal.
-Já pensou que eles talvez estejam te evitando de propósito? - ouvi a voz da mulher próxima ao meu ouvido - Será que eles te consideram uma ameaça?
Respirei fundo e revirei os olhos. Maldita mulher.
-Se eles achassem que eu sou uma ameaça, eles teriam ido embora atrás da Polícia, você não acha?! - respondi.
 Dito e feito: um carro da Polícia se aproximava do prédio. Joguei a pedra no chão e corri para dentro do hotel, me escondi.


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[14]
Corri o mais rápido que pude, me senti enganado e traído.
"Me deixaram ao relento em um prédio escuro e sujo enquanto esperavam a polícia para me prender? Que acusações eles têm?!" pensava.
Subi até o último andar - ainda não havia ido lá.
De uma janela eu observei enquanto os policiais saiam do carro, meus "colegas" desciam do trailer, vi muita gesticulação e uma cara muito abatida por parte do Trajano. Ele parecia realmente preocupado e com medo.
-E agora, como você se sente? - a mulher voltou a me importunar.
-Eu me sinto como um ratinho preso em um buraco escuro, com uma mão tentando pegá-lo. - respondi.
Jorge apontou para cima, parecia que era para mim, me escondi com o coração batendo forte. Espero que não tenham me visto.
Os policias começaram a andar para dentro do prédio.
E agora?! O que eu faço?!
Continuo a me esconder ou me entrego de uma vez?



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[15]
 Hora de enfrentar as acusações.
Desci até o primeiro andar, mas não ouvia os caras no térreo. Olhei por uma janela e eles estavam lá fora novamente.
Trajano estava aparentemente abalado, talvez tivesse se arrependido de ter chamado a polícia.
Bom, eu tinha que aparecer para poder resolver logo essa situação, então continuei descendo.
Assim que cheguei na metade das escadas, entre o primeiro andar e o térreo, Jorge entrava com os dois policiais pelo prédio.
Eles olharam para onde eu estava e Jorge apontou:
-Ali, ali está ele!
Senti um pouco de vergonha, mas engoli meus sentimentos e deixei apenas a coragem transparecer. Continuei descendo, de cabeça erguida. Eles vinham em minha direção.
Mas, assim que chegaram perto o suficiente para falar comigo, eles me ignoraram, como se eu não estivesse ali. A partir daí, tudo ficou parecendo um sonho.
 Eu me virei na direção em que eles estavam indo e vi, caído no vão da escada...
 Eu mesmo... Morto.
Via eles tentando me reanimar, verificando meu pulso. Jorge colocava a mão na testa, mordia um dedo, nervoso. Do lado de fora, Trajano olhava de lado, com lágrimas escorrendo, alguns soluços.
 Talvez estivesse se sentindo culpado. Ainda não parecia real.
Senti a presença gelada da mulher de véu ao meu lado.
-Isso é real? - perguntei sem me virar para ela.
-Bem, não posso te afirmar com certeza se é real pois cada um tem uma ideia do que é verdadeiro. - ela respondeu, fria.
-Afinal de contas, quem é você? Qual o seu nome? - perguntei para ela.
Ela ficou em silêncio.
Olhei ao redor, via meu corpo sendo levado pelos policiais para a viatura, Trajano olhava para dentro do prédio, assustado. Eu não consegui fazer nada.
Em alguns minutos todos haviam ido embora. E eu fiquei. Me virei novamente para a mulher, o véu agora revelava um rosto alvo, uma boca vermelha como sangue e, com seus olhos negros, ela me respondeu:
-Prazer, eu sou a morte.

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