segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Conto "Olhos Vazios"


Este conto começou a ser escrito no dia 4 de agosto de 2012 e encerrou no dia 18 de agosto de 2012.

Poli é uma jovem universitária solitária e sem lembranças que passa a ver e sonhar com coisas que parecem querer revelar a ela uma verdade sombria.

Assista a chamada para o conto.





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[1]
Comecei a faculdade há algumas semanas atrás, o lugar é novo, as pessoas são novas - mas eu ando cabisbaixa... Sou tímida demais. Espero as pessoas se aproximarem ao invés de ir falar, o que acaba afastando ainda mais, já que vivo fechada.
Nos últimos dias eu venho tendo um tipo de sonho... Nele eu estou muito sonolenta, quase dormindo, e por brechas de luz eu vejo alguém passar, mas está escuro demais para ver quem é. E isso tem se repetido bastante, quase toda noite essa pessoa misteriosa vem me visitar enquanto durmo... E o pior é não ter ninguém pra conversar por aqui...



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 [2]
Hoje estava na sala, no canto, como sempre fico.
Estava desenhando quando deixei sem querer meu lápis cair longe. Um cara que estava perto pegou e veio me entregar, fiquei um pouco nervosa...
-Oi... Não lembro de você por aqui... - ele falou e olhou para o que eu estava desenhando, que era uma gueixa - Nossa, que legal, então você gosta de desenhos orientais? Ah, a propósito, eu sou o Eduardo.
Fiquei um pouco sem reação... Primeiro por ele nunca ter me visto, segundo por ele ter sido tão legal.
-É... - tentei falar mais que isso, mas não consegui.
-Qual o seu nome? - Eduardo me perguntou.
-Meu nome... Meu nome é Poliana. - tentei sorrir... Meu Deus, como sou tímida!
-A gente pode... Sei lá... Se juntar depois pra conversar sobre essa arte, que tal? - ele deu um sorrisinho de leve no rosto e foi se virando.
Fiz um sinal positivo com a cabeça e ele se afastou.
Fiquei observando-o se afastar e estranhei quando vi a silhueta dele de longe... Parecia que eu já tinha visto aquelas formas muitas vezes antes... Estranho...



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[3]
Estava voltando para o pensionato estudantil, já era tarde, acabei perdendo a hora na biblioteca. Não costuma ter muita iluminação por aqui, mas hoje estava terrível... Muitos postes estavam apagados e apenas as luzes de dentro dos prédios jogavam alguma luz na rua. Apressei o passo, claro, e fiquei observando tudo, com todo o cuidado que pude ter. De longe eu via, sentada em um banco, uma figura que não parecia ser estranha...
"Aquela sombra..." pensei "aquela sombra não é estranha..."
O vento forte e frio da noite fazia meu cabelos balançarem bastante, algumas vezes caindo nos meus olhos e me impedindo de ver. Peguei o celular pra ver a hora, já passava das dez e meia da noite, o toque de recolher da segurança era naquele mesmo momento, logo algum vigia passaria por ali, se tivesse sorte.
Ainda estava com os olhos no celular quando bati em algo que estava a minha frente - embora ele não estivesse alguns segundos atrás. Com o impacto eu fui ao chão e deixei meu caderno de desenhos cair longe. Meio atordoada, olhei pra onde bati e vi, ainda de pé, um homem me olhando, parado. Apertei o olho pra tentar enxergar o rosto direito, mas não deu tempo... Ele pegou meu caderno e saiu correndo, sumiu na escuridão. Ainda gritei para pará-lo, mas ele fugiu por entre os prédios. Pouco tempo depois um vigia apareceu e me ajudou, mas não havia o que fazer... Não consegui identificar quem era, mas aquela sombra... Aquela sombra eu conheço...



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[4]
O dia amanheceu cinzento, com ventos gelados que faziam barulho nas frestas da janela.
Observei a rua, vi o movimentar dos estudantes, alguns rindo, outros ouvindo música, interagindo, vivendo... Me senti extremamente só...
Não lembro o que aconteceu ou se eu já nasci assim, com essa incapacidade de interagir com as pessoas.
Me arrumei para ir para a aula e fui caminhando pela mesma rota da última noite. As árvores se mexiam freneticamente, mas as pessoas pareciam estar em câmera lenta ao meu redor.
E lá estava, meu caderninho de desenho no banco de rua, ao relento. Olhei ao redor, para ver se tinha alguém me vigiando, mas todos estavam, como sempre, agindo como se eu não estivesse por ali.
Peguei-o e comecei a folhear. Meus desenhos estavam intactos, mas um novo havia sido feito... Era um desenho ultrarrealista de uma casa que aparentava estar abandonada, descuidada. Me admirei com a riqueza de detalhes... E de alguma maneira aquele lugar me era familiar...
Quando dei por mim, a rua estava vazia, apenas o vento me fazia companhia.
Fui pra aula com aquela casa na minha mente.
Alguém quer me dizer algo, eu sinto isso.




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[5]
Minhas pálpebras ficaram pesadas e a aula se tornou mais cansativa esta manhã, acabei dormindo.
Sonhei com aquela casa do desenho... Eu era criança novamente, estava segurando na mão de uma mulher alta, magra, que me conduzia para dentro da casa. Não conseguia olhar para o rosto da mulher porque... Não havia rosto... Era apenas um espaço vazio, sem cavidades, sem nada... Pele no que deviam ser
olhos, boca, nariz. Mas de alguma maneira aquilo não me assustava! Prossegui segurando naquela mão esquelética, indo em direção à construção daquela velha casa. Ao meu redor, não haviam pessoas ou outras casas, apenas muito mato baixo e uma estradinha de areia que seguiam ao horizonte.
Em certo momento eu passei a ir sozinha para a casa, abri a porta lentamente, estava escuro lá dentro. Acendi uma luz e vi nas paredes vários desenhos de guerreiros samurais, gueixas, sakuras... Entre os desenhos, um quadro no qual estava uma fotografia de mim e aquela mulher sem rosto juntas, eu estava sorrindo, parecia feliz. Me virei para a porta, que estava aberta, e vi a mulher, agora estava com uma capa preta esvoaçante e de cabeça baixa. Fiquei parada, olhando-a, boa parte do sonho foi apenas eu e ela, paradas, sem ação nenhuma. Então de repente sangue, muito sangue começou a escorrer de dentro da capa pelas pernas da mulher, logo fez uma poça grande ao redor dela, que seguia em direção a mim. Me assustei no sonho e acordei no susto na aula.
Muitos da turma olharam para mim, devo ter feito barulho. Mas nem todos estavam me olhando... Eduardo continuava olhando pra frente, como se estivesse me ignorando.
No término da aula eu esperei todos saírem e quando passei pela cadeira do Eduardo, vi um desenho que me deixou intrigada...
Ele desenhou uma mulher numa longa capa preta, onde era impossível ver seu rosto, que estava imerso na escuridão. Coincidência?
Procurei-o pelo campus mas não o encontrei... Durante todo o resto do dia ele sumiu... Como ele deixou o caderno dele na sala de aula, eu estou em dúvida... Pego e levo pra olhar e devolvê-lo amanhã?



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[6]
Levei o caderno do Eduardo para o pensionato, tomei meu banho, sentei na cama e fiquei de frente para o objeto. Pensei em não abrir, poderia estar sendo mal-educada em querer mexer no que não é meu... A curiosidade foi maior... Abri!
Inicialmente não vi nada de anormal, era um caderno comum, com anotações sobre as aulas, alguns rabiscos, nada demais. Folheando mais cautelosamente, pude perceber na orelha superior das folhas rabiscos que, se eu deixasse passar com velocidade (como fazem para animar desenhos da maneira antiga, onde cada folha se faz uma leve mudança) eu perceberia que não eram apenas riscos soltos... Eles formavam uma frase! Fiquei entusiasmada.
Rapidamente, repeti a ação e prestei atenção no que aquilo queria dizer.
"Travessa do Homem Sozinho". Como assim, isso é um endereço, uma frase filosófica?
Pedi ajuda à internet e descobri que era a primeira opção: Eduardo escreveu um endereço. Mas, seria outra coincidência se eu disser que nesse endereço existe apenas uma casinha no meio do nada, rodeada por mato...?


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[7]
Passaram-se vários dias, creio que já tem uns 9 dias, Eduardo não voltou mais para as aulas. Não aconteceu nada de anormal durante esse tempo... Continuei sozinha, na minha rotina, estudando... Mas a cabeça sempre naquele endereço e nas "coincidências" que aconteceram há pouco tempo...
Sempre que vou dormir eu espero continuar aquele sonho onde estou naquela casa... Quero tanto saber o que aconteceu lá, quem é aquela mulher...
Talvez isso seja meu subconsciente querendo finalmente me dizer o que aconteceu na minha infância...
Afinal, sou uma pessoa sem lembranças... Talvez seja por isso que meus olhos são vazios, sem esperança, sem amor, desprendidos.
Fico dizendo para mim mesma que não é possível nascer com a escuridão dentro de si, algo deve ter acontecido para que eu ficasse assim.
Embora agora o vazio é tão profundo em mim que já não sei onde termina ele e eu começo...




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[8]
Suava frio, estava meio tonta, achei que fosse desmaiar de tão nervosa! Eu precisava saber do paradeiro do Eduardo e pra isso eu precisava falar com um dos amigos dele... Respirei fundo e fui em direção a um deles, que estava deitado num banquinho do campus. Quando cheguei mais perto ele me olhou com uma cara muito estranha, como se eu fosse uma aberração. Pensei em sair dali correndo, mas aí sim eu seria uma aberração completa.
Busquei forças e falei:
-Oi... - olhei pra baixo, para desviar do olhar dele - tu sabe onde está o Eduardo?
Ele deu uma risadinha estranha e falou:
-Eduardo se foi...
Levantei a cabeça assustada e o encarei por dois segundos, sem saber o que dizer. Ele continuava com o sorriso.
-Ele se mudou, garota. Foi uma coisa de última hora... Ele disse que aconteceram umas coisas estranhas e ele teve que voltar pra casa dele.
-Coisas estranhas? Que tipo de coisas? - perguntei.
-Eu não sei! E também não sei onde é a casa dele. - ele disse isso e olhou repentinamente para um canto atrás de mim e mudou a expressão facial, ficou assustado. - Eu preciso ir.
E foi embora.
Me virei e não vi nada, só gente passando pra lá e pra cá.
Observei melhor e entre dois prédios, em um beco, eu vi uma silhueta de uma cabeça, ela estava parada, mas era pequena demais para ser de uma pessoa.
Me aproximei lentamente do beco e a escuridão foi se dissipando. A cabeça era na verdade a cabeça de uma boneca em cima de um barril. Não havia corpo, nem olhos, apenas a cabeça de plástico.
"Alguém deve estar brincando comigo..." pensei.
Peguei a cabeça e a observei de perto. Aqueles buracos sem olhos me lembravam a mim mesma, de como eu devo ser assim para as outras pessoas...
Girei a cabeça e na nuca está escrito... Está escrito...
Não... Não pode ser...
Está escrito "OLHOS VAZIOS".
Ele me conhece.

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[9]
Fui para casa com a sensação de que não sabia mais nada da minha vida - nem mesmo quem eu era.
Acho mesmo é que nunca soube... Pois pra saber quem somos precisamos ter uma história, e tudo o que sei é que fui deixada pelos meus pais em um pensionato velho e sujo e nunca mais os vi, nem lembro do rosto deles.
Talvez seja o que aconteceu antes que me fez ser assim.
Cheguei em casa e liguei o com
putador, a caixa de email sinalizava 30 mensagens novas! E todos da mesma pessoa, que eu desconheço. Em cada uma das mensagens, apenas uma letra... Não faziam sentido na ordem que eu estava lendo, mas... Assim que li de trás pra frente ficou claro...
"ME ENCONTRE" estava escrito.
"Me encontre? Me encontre onde?" falei em voz baixa.
Um segundo depois, um novo email.
"VOCÊ SABE ONDE."
Gelei. Pensativa, olhei para a cabeça da boneca, aquele sorriso parecia mais maligno do que antes e aquele vazio nos olhos me tragava pouco a pouco.
"Eu sei onde... É aquela casa... Ele me quer lá..."





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[10]
De alguma maneira eu consegui dormir, foi difícil pois sentia que tinha alguém além de mim naquele quarto - mesmo olhando cada canto cuidadosamente e constatando que eu estava sozinha.
Sonhei de novo com aquela casa, mas dessa vez eu já estava lá dentro e as paredes estavam limpas. Um grande pano branco dividia o cômodo que eu estava de um outro, que parecia ser a sala. Estava muito iluminado 
nessa sala, tudo o que eu via eram sombras do outro lado. Certo momento aproximou-se a sombra de uma pessoa. Bem próximo do pano, ela encostou a mão nele e ficou parada, como se estivesse me esperando. Então eu fui pra perto dela e, quando estava quase tocando-a, ela foi puxada. Alguns segundos depois uma grande mancha vermelha cobria o pano alvo, em pouco tempo tudo estava vermelho. Me afastei do pano e fiquei assustada, parada, sem saber o que fazer. Um grande grito de dor cortou o silêncio - e fez eu me acordar no susto novamente.
Sentada na cama, olhando para aquela cabeça de plástico que competia seu vazio com o meu, eu entendi uma coisa... Enquanto eu não for naquela casa, eu não vou ficar em paz.





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[11]
Depois dessa noite eu tomei uma decisão. Pode não ser a mais inteligente, mas o que mais eu tenho a fazer? Não vou ter paz na minha vida se não fizer isso... Ou talvez eu finalmente encontre a paz.
É isso... Eu estou indo para aquela casa...
São mais de 300 quilômetros até lá, então amanhã, sábado, partirei.
Não tenho muito a perder, quem sabe eu até ganhe novas lembranças.
Me desejem sorte.

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[12]
Passei uma parte da viagem de ônibus pensando o que eu farei quando chegar lá... E se não tiver nada? E se as respostas que eu estou querendo não forem dadas?
Dormi mas não sonhei... Acordei na rodoviária e entrei num táxi. O motorista foi muito simpático, mas quando falei para onde eu queria ir ele fez uma cara de espanto e disse: "Me desculpe moça, mas eu não posso te levar para lá. É melho
r você procurar outro taxista.", e não falou mais nada. O mesmo ocorreu com outros dois taxistas - ninguém quis falar a respeito disso. Quando vi, não havia mais nenhum táxi por perto - e a cidade não possui sistema de ônibus. Estava frio, sentei em minha bolsa e fiquei na rodoviária esperando um milagre.
Algum tempo depois um táxi parou em minha frente, entrei e não recebi nem um bom dia. Em silêncio ele ouviu o endereço para o qual eu estava querendo ir e começou a dirigir. Eu via através do retrovisor que ele me observava constantemente por seus óculos escuros. Ele me olhava tanto que eu já estava assustada, pensando em sair - e foi nesse momento que ele travou as portas.
-Moço, eu acho que quero ficar por aqui. - falei.
Ele não me respondeu, continuou dirigindo e me olhando.
-Ei, moço, eu quero descer, tá me ouvindo? - falei novamente, dessa vez deixei transparecer meu nervosismo.
Ele lentamente foi tirando os óculos escuros e revelando dois olhos vermelhos como sangue.
Ver aqueles olhos geraram flashes em minha mente, quase instantaneamente.
Eu já vi esses olhos!
-Olá... Poliana. - aquela voz grave ecoou em minha cabeça como sinos.
Tentei desesperadamente abrir a porta, mas já era tarde demais.







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[13]
Abri os olhos, estava tudo escuro. Hoje deve ser meu dia de sorte...
O ar que eu respirava era denso, tinha um forte cheiro de madeira mofada. Tentei movimentar as pernas, mas era impossível, era como se eu não as tivesse mais - embora estivessem lá.
O silêncio era terrível, parecia que eu estava no vácuo.
Apalpei o chão onde estava e a parede próxima a mim, tudo era madeira. Forcei meus braç
os e me arrastei até o canto do ambiente, onde fiquei esperando algo acontecer.
Passos quebraram o silêncio, uma porta foi aberta e o seu rangir machucou meus ouvidos. Uma pequena e fraca luz foi acesa e iluminou algo. Sem meus óculos a visão estava meio embaçada, mas tenho quase certeza de que vi uma pessoa usando uma máscara...
Aquela máscara sem expressão me observou por longos minutos, sem som algum permanecemos paradas. Eu estava com muito medo para falar alguma coisa.
A pessoa se virou para o lado e foi para outro lugar - talvez ela queira me mostrar alguma coisa.
Um barulho altíssimo me fez tremer de susto, parecia interferência numa TV, aquele chiado. Aos poucos o barulho foi ficando mais limpo e eu ouvi a voz de uma criança. Engoli seco ao reconhecer que aquela voz era minha.





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[14]
Da sala vinha aquela voz tão familiar que ficava falando "vem, vem pra cá, vem! Vem mamãe! Se apressa!" e parecia que era um convite para que eu saísse daquele quarto escuro e fosse logo ver o que era.
Tentei mais uma vez mexer minhas pernas, elas pareciam estar menos duras, em poucos minutos ela havia voltado ao normal. A voz da criança continuava na sala, brincava e sorria como se estivesse

realmente feliz. Com as pernas tremendo me levantei e me segurando pelas paredes finalmente cheguei à porta.
Coloquei uma parte da cabeça para fora e vi a luz de uma TV vinda de outro cômodo. Me aproximei da fonte do som e comecei a chorar ao me ver na televisão. Era realmente eu quando criança... Eu era tão feliz... Como eu pude ficar como estou?
A imagem da criança feliz começou a sumir, parecia que o filme estava sendo queimado dentro da tela. Olhei ao redor, mas pelo que a luz da TV iluminava, eu estava "sozinha". Um grande ruído me deu outro susto, olhei para a TV e ela mostrava agora um local escuro que parecia um corredor com uma porta no final. A câmera estava no chão, um pouco torta, como se tivesse sido jogada. Um minuto depois a porta foi aberta com violência e saiu de dentro um menino ensanguentado correndo de alguma coisa. Foi tão rápido que eu nem pude identificar o rosto da criança. Mais um minuto sem movimentação e então apareceu uma menina de cabelos curtos e uma camisola branca também ensanguentada. Ao contrário do menino, ela dava passos pequenos e vagarosos. Não era possível ver o rosto dela, até que ela parou onde só se via o pé, pegou a câmera e começou a filmar por onde andava. Ela caminhava pela casa e fazia rangidos na madeira do chão com aquele pé pequeno e branco. Parecia estar procurando o garoto. Chegou num local cheio de armários e abriu um em específico - e lá estava o garoto, encolhido e chorando.
Em meio ao pranto o garoto implorou:
-Pára, por favor, pára... Poliana...
Prendi a respiração ao ouvir aquele menino implorando para que aquela criança que poderia ser eu parasse de fazer o que estava fazendo.
Tanto sangue em cima daquelas crianças... O que estava acontecendo?!





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[15]
A cena na TV foi cortada e apareceu em outro dia, provavelmente, a camera estava jogada no chão, filmando uma sala completamente bagunçada, com móveis no chão e caos por toda parte. A garotinha de cabelos curtos passa de costas segurando um balde, pega um pincel, molha-o no líquido do balde e começa a pintar na parede. O líquido escarlate escorria pela parede e fazia rastros até o chão. "Isso

é sangue?" pensei. Aos poucos o desenho se delineava e ao fim eu vi... Uma cerejeira... Era eu...
A criança do vídeo se vira e vai andando em direção à câmera. Dessa vez eu pude ver o meu rosto de criança com uma expressão macabra. A menina pega a câmera e aponta para o próprio rosto. Levanta o olhar e foi aí que meu coração quase parou: seus olhos eram negros como a mais completa escuridão. Levei minha mão à minha boca e fiquei atônita, sem conseguir pensar direito.
A cena foi cortada e apareceu em seguida a câmera andando pela casa na mão de alguém. Ouve-se a voz do menino:
-Poli... Me deixa ir... Por favor... - choro misturava-se com a voz.
A menina (eu), que estava de costas, se virou e olhou enfurecida para o menino. "Você não vai sair daqui" uma voz raivosa saiu da boca da criança. E então se virou novamente - continuava a pintar.
A cena cortou novamente e apareceu a menina já caída no chão, sangue em volta da cabeça, ela parecia desmaiada. Ouve-se o arfar do menino atrás da câmera. Ele pega a chave que estava pendurada no pescoço da garota e vai correndo em direção à porta. Quando finalmente chega ao lado de fora, ele tranca a casa e sai correndo. Vira-se rapidamente para ver a casa e a menina, pela janela, olhava malignamente para o garoto. A fita acaba.
Estou sem palavras... O que eu fiz?!


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[16]
Volto a ficar na escuridão, ouço uma respiração além da minha dentro da sala. Permaneci em silêncio, afinal, percebi que tinha culpa de coisas terríveis e me defender poderia ser pior.
-Poliana... Você não lembra? - era a voz grave do motorista do táxi.
Seria ele o Eduardo? Arrisquei e perguntei.
-Eduardo? Não... Não é o Eduardo... Você vai encontrá-lo logo mais... - a voz respondeu.
Comecei a chorar, soluçava de desespero.
-PARE DE CHORAR! Você acha que vou te deixar sair só porque está desesperada? Seu monstro! - a voz ficou terrivelmente exaltada.
Senti uma pancada forte na minha cabeça e desmaiei.





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[17]
Acordei desorientada, presa por cordas a uma parede de cimento grosso, que me machucava. Estava tão perdida que não sabia mais o que aconteceu, nem como havia parado naquele lugar. A escuridão me fazia ficar cada vez mais confusa. Uma luz fraca e oscilante que fazia um barulho estranho foi acesa. Aos poucos vieram aquelas lembranças, como flashes... A cabeça da boneca sem olhos, as sombras, o

vazio... De longe eu via alguém, apenas um borrão para mim, que estava sem óculos. Fechei os olhos fortemente para tentar enxergar e a imagem começou a se formar... Era uma máscara, e a pessoa que usava-o estava caminhando lentamente em minha direção.
"Não... Não... Por favor, me deixem em paz..." pedi de cabeça baixa, exausta, fraca.
-PAZ? Você quer PAZ?! - a voz grossa e raivosa gritou do meio da escuridão.
Assustada, levantei a cabeça e vi, parado na minha frente um homem alto e totalmente desfigurado. Não havia cartilagem no nariz, a boca estava rasgada e um olho estava tapado pela própria carne. Gritei desesperada.
-Você não sabe o que é ter que usar um rosto falso por aí para as pessoas não ficarem com medo de você! Você sabe?! NÃO! SUA MISERÁVEL! - ele gritava próximo ao meu rosto, chegando a cuspir em mim.
Abaixei meu rosto mas ele pegou no meu pescoço e me jogou contra a parede.
-Você vai o sofrimento que você causou! Abre o olho!
E ele acendeu uma luz vermelha e iluminou as paredes...

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[18]
Não consegui suportar olhar e fechei os olhos novamente. O homem desfigurado e enfurecido segurou em meu rosto com toda a força e mandou eu abrir os olhos. Resisti o quanto eu pude, mas ele puxou minhas pálpebras e forçou minha cabeça para que eu olhasse.
Nas paredes, fotos grandes de um corpo desmembrado, um homem com o rosto ensanguentado e por trás das fotos os desenhos orientais em vermel
ho que eu vi serem feitos no vídeo.
O homem virou o meu rosto para o dele e falou:
-Tá vendo? TÁ VENDO? Foi isso o que VOCÊ fez! Você matou a sua MÃE e acabou com o rosto do seu PAI!
Fiquei boquiaberta e mais perdida do que antes. Ele é o meu pai...?
-Você pode não lembrar, mas eu lembro! Toda a dor e sofrimento que você nos trouxe... VOCÊ é aquela criança com força sobre-humana que matou a própria mãe a sangue frio... Acha que eu vou te perdoar porque você não se lembra!? HÃN?! Acha?! - ele me socou no estômago - RESPONDE!
Eu chorava... O que eu poderia falar?!
-Eduardo! Trás minha faca aqui! - ele gritou.
Senti uma sensação de vários choques elétricos pelo meu corpo. Dentro de mim, um vazio parecia estar se abrindo. Tentei olhar pra dentro de mim mesma, porque parecia que algo queria falar comigo. Dois olhos grandes e negros se formaram em minha mente.
"Poliana... Quanto tempo... Vamos nos divertir novamente?" ouvi uma voz demoníaca na minha cabeça.





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[19]
"Quem é você?" perguntei para o dono daqueles grandes olhos negros.
-Eu sou seu único amigo, Poliana... Não lembra de quando seu pai te estuprava e seu mãe te batia, a quem você recorria?
Foi aí então que eu lembrei de tudo. Senti que caia num abismo. Vi novamente a cena da silhueta do homem que vinha no escuro me visitar, a mulher sem rosto e sem amor que segurava minha mão... Eles me fizeram sofrer tanto que o mal veio e habitou em mim...
"Você quer morrer, Poliana?" ouvi a voz perguntar em minha mente. Eu já havia ouvido essa perguntar antes, e na primeira vez que eu a respondi terminei fazendo coisas terríveis...
O que eu devo responder?! Devo me render a essa entidade ou aceitar meu fim?!



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[20]
-EU NÃO QUERO MORRER!!! - gritei com toda a força que tinha no momento.
O homem riu de mim, debochando. Esperei que algo de sobrenatural acontecesse em mim para que me libertasse das amarras, mas eu continuava fraca e presa.
-Eduardo?! Cadê minha faca?! Edu... - ele parou de gritar e soltou um urro, com os olhos esbugalhados. O homem foi ao chão.
Assustada e sem entender nada, olhei o corpo cair e espalhar sangue por todo lado. Uma faca havia sido cravada nas costas dele.
Levantei o olhar e lá estava Eduardo, com o mesmo olhar daquela menininha do vídeo. Ele carregava no rosto um sorriso maligno.
-Aí está sua faca. - ele falou para o defunto e deu uma risada.
Me fugiram as palavras. Eduardo se aproximou de mim, desamarrou o que me prendia e falou:
-Me desculpe ter demorado tanto, irmã.
-Eduardo... O que houve contigo? - perguntei.
Ele pegou uma luzinha e apontou para a parede, nela estava o desenho da mulher na capa preta, envolta em escuridão.
-Ela me visita todo dia, Poli... Desde que fugi de você ela insiste em me perseguir... Virou minha única amiga desde que você sumiu... Ela fez eu fazer tudo isso pra fazer você lembrar de onde você veio..
-De onde? - perguntei já temendo a resposta.
Ele riu e respondeu.
-Do puro mal...
Encostei na parede e respirei fundo.
-Não se preocupe, irmã, eu não vou te abandonar de novo... Vamos recomeçar nossas vidas juntos. - ele segurou em minhas mãos.
Olhei fundo nos olhos dele. A escuridão dele encontrava com a minha. Sorrimos de leve, aliviados.
Finalmente encontrei paz.
 
 

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