segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Conto "Obliviados"


Este conto começou a ser escrito no dia 19 de julho de 2012 e encerrou no dia 02 de agosto de 2012.

Uma viagem levou Samara a uma cidade inabitável há mais de 80 anos. Mas será que alguém ainda está por lá?






Saímos de viagem, finalmente!
Eu, minha irmã, o cachorro e meus pais no nosso carro novo, em direção ao norte.
Vamos visitar nossos parentes e, minha mãe não quis me dizer mas eu acabei sabendo, que uma das tias dela está pra morrer, sofre de um câncer há um bom tempo. Deve ser por isso que a mãe está com uma cara tão abatida, tadinha!
Bem, vou ver se arrumo algo pra fazer durante essa viagem que promete ser longa - 5 horas de estrada.



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Adormeci, acordei e ainda falta mais da metade da viagem! Ah, tem que ter muita paciência. Estava lá, encarando a janela, quando a Érica me chamou a atenção.
-Ei... Ei, mana! Olha, tenho uma coisa pra te contar, mas só se você me prometer não ficar com medinho! - ela costuma ficar me zuando só porque eu ainda durmo com as luzes acesas aos 17 anos.
-Hum... Fala... - bocejei.
-Sabe por onde vamos passar daqui a pouco? Lago Verde. - ela deu um sorrisinho maléfico e eu franzi a testa pois não estava entendendo onde ela queria chegar - Lago Verde, mana! Não lembra? A cidade que foi devastada por uma arma química na década de 30 e ficou inabitável... Cidade mais conhecida como Rosa da Morte.
-E daí?
-Bem, dizem que se você olhar bem para dentro dos prédios e casas abandonadas que ficam mais próximos à estrada é possível ver... Coisas. - entendi onde ela quer chegar, ela quer que eu pegue o binóculos e fique olhando para lá.
-Eu não tenho medo disso, Érica. E se você quiser eu fico olhando pra lá com o binóculos sem problemas... - falei com um ar de superioridade.
-DUVIDO!
Então está combinado. Assim que chegarmos perto de Rosa da Morte eu vou olhar... Vou provar pra ela que não sou medrosa como ela pensa.



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 Passou uns cinco minutos, andávamos entre campos verdes com algumas árvores grandes e centenárias, o cenário era lindo e digno de fotografias lindas. De repente o cenário mudou bruscamente - tudo virou um deserto. Era como se tivéssemos sidos transportados para um outro lugar no mundo.
-O que aconteceu com esse lugar? - perguntei.
-Isso tudo aqui era verde e vivo, Samara. Mas depois do acidente em Lagoa Verde as plantas morreram e não conseguiram crescer novamente... - meu pai respondeu enquanto dirigia.
Nossa... Fiquei pensando na magnitude dessa catástrofe. A coisa deve ter sido muito feia mesmo.
-Mana, pega o binóculo, a cidade tá chegando. - Érica falou me entregando ele.
Peguei e fiquei olhando pela janela. Algum tempo depois comecei a ver ruínas aparecendo, meu pai diminuiu a velocidade, peguei o binóculos e fiquei olhando atentamente. Aos poucos fui ficando aliviada por não ter visto nada demais no começo - apenas prédios abandonados e destruídos. "Não tem nada aqui" falei pra minha irmã. "Tem certeza? Olha de novo..." ela me disse, com um sorrisinho no canto da boca. Suspirei e voltei a olhar. Grande foi minha surpresa quando realmente vi algo estranho! Não consigo acreditar que isso seja verdade!


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"AI MEU DEUS, PÁRA ESSE CARRO!!" gritei. Eu havia acabado de ver uma pessoa (pessoa? bem, pelo menos parecia ser) numa janela de um dos prédios abandonados balançando os braços como se estivesse pedindo ajuda. O que mais me assustou foi que boa parte do corpo dela parecia estar em carne-viva, como se tivesse sido arrancada ou queimada. Meu pai deu uma freada brusca e todos falaram quase em côro: "O que foi, samara??".
Procurei freneticamente novamente aquela pessoa com o binóculo, mas parece que ela sumiu da janela. Tem alguém precisando de ajuda lá!! E se for uma vítima de um crime que tá muito mal?
Em meio segundo tudo o que eu pude ouvir foi algo tão alto e quase ensurdecedor que não pode ser descrito aqui. Um carro acertou a traseira do carro do meu pai e nós capotamos por vários metros.
Agora estou aqui... Presa no meu banco, vendo minha família agonizar desesperadamente. Acho... que vou... desmaiar...




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Eu tentei! Eu juro que eu tentei!! Mas não consegui, acabei apagando depois do acidente.
Acordei agora a noite já, ouvi uns barulhos esquisitos, não consegui identificar... (O áudio está bastante danificado...)
E o pior de tudo... Cadê minha família?! Todos sumiram!! Já gritei por eles mas não tenho resposta... Preciso sair daqui!
Não lembro de ter sentido nenhum tipo de desespero parecido com esse na minha vida, parece que vou ficar presa aqui pra sempre!
 



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Respirava profundamente, o barulho foi embora e a única coisa que eu ouvia era o ar saindo da minha boca. O suor escorria pelo meu rosto, sentia uma pressão enorme em minha cabeça. Forcei os braços, tentei sair, mas precisava que alguém puxasse a porta para que eu pudesse sair. Olhei para o celular, estava sem sinal nenhum, o desespero começou. Foi quando ouvi um barulho vindo do porta malas, o carro começou a balançar: tinha alguém ali. Fiquei em silêncio, esperando algo mais. O movimento parou.
Ouvi latidos! Era o cachorro da Érica! "Figo!! Vem cá garoto!" chamei ele, que veio balançando o rabinho e mancando. Estava escuro, então não consegui observar direito se ele estava com algum ferimento exposto. Na verdade não conseguia observar quase nada, não há postes de iluminação por perto e a luz do meu celular é deveras fraca.
"Ei garoto!! Que bom te ver!! Me ajuda, me tira daqui... Puxa essa porta!" falei batendo na porta. Ele ficou um tempo só observando mas como ele é bem esperto, ele começou a puxar - nunca o vi fazendo tanto esforço, tadinho.
Demorou um tempo, mas eu consegui sair. Vi que havia machucado o pé, que ficou preso, por isso, estou manca também. Pelo corpo alguns arranhões e um pouco de sangue escorrendo pelo nariz.
Respirei aliviada, mas, apenas por um segundo. Cadê minha família? Não há nenhum corpo por aqui, na verdade, não parece ter nada vivo...
Ei... Espere aí... Acho que vi uma trilha de sangue em direção à Rosa da Morte! Sigo?




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Comecei a procurar por alguma "arma". Achei alguns cacos de vidros grandes, uns pedaços de madeira, mas nada que fosse realmente útil pra me defender. Foi quando me lembrei da faca que meu pai guardava no porta-luvas, faca essa que tinha pertencido ao avô dele, uma relíquia de família - eles acreditavam dar boa sorte. Voltei no carro, com muita dificuldade eu consegui abrir o porta-luvas, ficou emperrado por causa das batidas. E lá estava ela: a lâmina está impecavelmente afiada e brilhante, parece que nunca usaram ela. Espero não precisar... Estava dentro do carro quando Figo começou a latir, latidos que se misturavam a rosnados, ele só late assim para estranhos.
-Figo, o que é isso menino? - falei enquanto me virava.
Só deu tempo de ver uma sombra indo em direção à cidade abandonada. O coração disparou - essa coisa estava perto de mim o tempo todo? Bem, só estou mais certa de que, se minha família está viva, deve estar por lá...




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"Ok, mente, não me deixe louca, não me deixe medrosa, eu preciso ficar forte..." usava esses mantras pra poder conseguir andar em direção à cidade. Vou tentar descrever o que estava vendo...
Os prédios estão escurecidos como se tivessem passado por um grande incêndio (isso eu vi de dia), parte deles está com vários buracos nas paredes, alguns nem tem paredes em vários andares. Mato muito alto , chegando no meu ombro e um cheiro forte de enxofre. As únicas luzes que me guiam por aqui é o meu celular (que está com bateria baixa!) e a lua, que está cheia. Vejo muitas sombras por aqui... E em cada uma delas eu vejo coisas assustadoras... Eu não gosto de escuro, ele me faz ver coisas que provavelmente não estão lá! Ou pelo menos eu espero que não estejam. O som dos grilos e das árvores balançando ao vento são os únicos por perto.
Estava me aproximando lentamente do lugar, minha perna ainda dói muito. Do nada Figo começou a correr e me deixou pra trás - ele com certeza viu ou farejou alguma coisa. Ouvi latidos misturados a rosnados, comecei a me tremer e a suar nas mãos, o coração bateu mais forte, senti gosto de sangue na boca. "Figo...?" falei rouca. O latido parou e ele começou a chorar, veio em minha direção novamente correndo e se escondeu entre minhas pernas. Me abaixei e abracei ele, pra ver se ela parava de fazer barulho. Senti um movimento dentro do mato - há alguém além de nós por perto. Fechei bem os olhos e estou agachada agarrada ao Figo, torcendo para que essa presença que se movimenta lentamente não me encontre aqui...


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Sentia minhas carnes tremendo, o nervo embaixo do olho começou a pular, a boca ficou seca.
 Foi aí que me lembrei: a faca! Sim, a faca! Melhor eu pegar para me prevenir...
Segurei no punhal firme e fiquei esperando a coisa chegar perto. Se eu morrer, que seja lutando.
Eu sentia aquela presença cada vez mais próxima de mim, mais, e mais, e mais, quando algum barulho veio da cidade. Parecia ser um ruído vindo de uma garganta rouca, sem voz alguma, parecendo uns estalos. Nunca vi coisa tão estranha!
A coisa que estava perto de mim respondeu com outros ruídos e saiu correndo. Respirei aliviada.
"Parece que escapamos dessa, amigo..." falei baixinho pro Figo. "AAAAAAHHH NÃOO, NÃO, NÃO, ME SOLTAAAA!! AAAHHH" gritos misturados com choro começaram a vir da cidade e a voz era muito semelhante à da Érica!
Ouvi vários estalos roucos tão altos que não pareciam ser de humanos. Ai, será que eu estar aqui é realmente o certo? Devo deixar minha família para trás e nem tentar ajudá-los ou esperar o dia amanhecer para ir lá?




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Me encolhi num canto que parecia seguro, longe dos ruídos, abracei o Figo, que estava tremendo também. Alisava os pêlos dele pra me acalmar e acalmá-lo. Meu corpo cansado se rendeu e eu terminei dormindo (ainda que tentasse ficar vigilante).
Me acordei repentinamente com o Figo correndo em direção às ruas da cidade, já pela manhã. Acordar já com um susto não é muito bom...
"Bom, pelo menos eu ainda estou viva..." pensei. Me levantei e pude ver a magnitude da destruição na Lagoa Verde, nunca tinha visto algo assim... Fiquei imaginando a dor que passaram as pessoas que estavam ali no momento da arma química... A dor, o desespero... A morte.
Engoli seco, ouvia o barulho de Figo no meio dos entulhos mas não sabia onde ele estava. "Pssst, pssst!" tentava chamar atenção dele, sendo discreta. Olhava ao redor, pra dentro dos prédios, mas parecia mais que eles é que estavam olhando pra mim, me consumindo, me querendo. Apertei a faca em minhas mãos. Figo veio em minha direção um tempo depois e segurava algo na boca dele. Me agachei e tirei dele o objeto. Era o celular do meu pai... Eles estão aqui, e com certeza absoluta não estão sozinhos...




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Catei uma barra de ferro leve o suficiente para eu carregar e forte o suficiente pra machucar. Olhei ao redor... Continuo com aquela sensação de que tem algo me olhando de dentro desses prédios... Olhei pra trás e pude ver de longe o carro capotado na estrada, ou seja, sei para onde correr caso aconteça algo - e mesmo assim, vou correr pra lá pra quê? Por quê lá seria mais seguro que aqui?
Enfim... Continuei caminhando, procurando por pistas da minha família. Figo começou a farejar algo e foi andando mais rápido. Começou a latir enquanto andava e em poucos segundos já estava correndo e mancando - sofri pra alcançá-lo com uma perna dolorida.
Chegamos em frente a um prédio de dois andares e na frente há uma grande placa queimada em que é possível ler "Berçário da Lucy". Sem titubear, o Figo entrou no prédio farejando e soltando latidos (eu, claro, com o coração na boca por causa do barulho que ele estava fazendo). Entrei no prédio depois de uns minutos observando, pra ver se não tinha nada perigoso lá dentro. Mas quer saber? Mais perigoso do que já tá? Acho difícil. Entrei. Vi marcas do desespero por todo lugar ali dentro... Marquinhas de mão nas paredes, máscaras de proteção contra gás pelo chão, roupas sujas jogadas pelos cantos e alguns brinquedos velhos dizendo olá com seus olhos vazios. Engoli seco quando entrei no quarto das camas. Figo ficou parado em um canto latindo e rosnando para um quartinho fechado. "Pssst, pssst" tentava mandar ele parar de latir enquanto me tremia toda. Tem algo ali dentro. Gente, achei que fosse desmaiar de tanto medo... Dei dois passos em direção ao quartinho e parei. E se a Érica estiver presa aí, com um desses seres fazendo mal pra ela? "Tum, tum, tum, tum..." meu coração parece mais tambores. Dei mais uns passos e fiquei de frente pra porta. Apertei a barra de ferro na minha mão e girei a maçaneta. "É agora..." comecei a abrir a porta e Figo ia rosnando mais ainda. "Nheeeeeec" a porta ia rangindo. Parecia uma eternidade. Finalmente a porta foi totalmente aberta. Está escuro, muito escuro dentro desse quartinho, que eu acho que era uma despensa ou algo assim. Acendi a luz do meu celular (que está prestes a descarregar) e apontei pra dentro. Então eu vi... Agachado, imóvel, no canto no quartinho...


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"Quem é você?" perguntei baixinho para aquela coisa que estava ali. Apontava para ela a luz do celular, mas só pude ver a pele danificada, parecia estar muito queimada, quase em carne viva... Carne viva.. É isso! Será que é aquela pessoa que eu vi na janela e ela está aqui se escondendo de algo?
"Ei, você está bem?" perguntei e recebi silêncio como resposta mais uma vez. "Talvez esteja dormindo" pensei e me aproximei lentamente. Quando estava quase tocando no braço "daquilo", ele começou a tremer. Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, ele se levantou e veio pra cima de mim, me segurando pelos braços, com os olhos arregalados e desesperados, soltando grunhidos. Gritei e instintivamente bati nele com a barra de ferro e continuei batendo depois que já estava caído. Só parei quando vi que estava desacordado. Joguei a barra de ferro no chão e desabei em lágrimas. Não estou acreditando que sozinha pude derramar tanto sangue... Não estou acreditando que estou aqui! E agora? O que eu faço com essa coisa?? O que eu faço antes que ele acorde?




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Sequei as lágrimas do rosto, apanhei a barra de ferro e a segurei firmemente. Engoli seco, buscava forças, não sou forte para fazer essas coisas. Uma pancada, apenas uma pancada forte e certeira. Os ossos do rosto se esfacelaram e alguns miolos foram jogados longe. Não consegui olhar para aquilo por mais que 1 segundo, me deu asco... Não tive muito tempo para chorar ou correr, ouvi passos do lado de fora do prédio. Me apressei e entrei junto com o Figo no quartinho que aquela coisa estava e tranquei a porta. Através de uma brecha eu fiquei observando o que acontecia do lado de fora... E o que eu vi tirou todo o meu chão...




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Tapei minha boca com as duas mãos e fui pro fundo do quartinho. Fechei os olhos e fiquei pensando que o que eu estava vendo não era realidade. Não, não pode ser...
Voltei para a brecha e lá estava. Uma daquelas coisas estava CHORANDO em cima da que eu havia acertado e estava vestida igual à minha mãe!! As roupas estavam rasgadas e ensaguentadas e boa parte da pele parecia ter sido arrancada brutalmente, me fazendo perguntar como ela poderia estar viva. Uma dor enorme atingiu meu peito... "Será que eu matei alguém da minha família?"
Deixei escapar um soluço de choro, a coisa do lado de fora conseguiu ouvir e começou a vir em direção ao quarto. "Não... Não quero matar mais coisa nenhuma! Não quero matar minha família..."
 Não importa o quanto eu pense isso, a coisa continua vindo em direção a mim e aqueles grunhidos estão chegando cada vez mais perto.
Estou apertando a faca nas minhas mãos.
 Agora é hora dos meus instintos mostrarem do que são feitos.




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A maçaneta começou a ser girada, mas a porta estava trancada. Aos poucos a força foi aumentando e os grunhidos foram ficando mais fortes, mais violentos, não faltava muito para aquela porta ser derrubada. "É o meu fim" pensei. Respirei profundamente mais uma vez e me posicionei para um ataque com a faca. Foi aí que percebi Figo fuçando um cantinho do quarto sem parar, chegava a ficar arranhando o chão, como se quisesse cavar para chegar ao outro lado da parede. Achei que aquilo merecia atenção e cheguei mais perto, o que foi minha salvação. Ele estava fuçando uma portinha! "Uma saída...?" não sabia se era minha mente pregando truques ou se era verdade. Sentei no chão e a empurrei com os dois pés (doeu!). E abriu!! Me virei e engatinhei para dentro, na hora nem pensei no que havia do outro lado. Figo entrou logo após eu entrar e eu empurrei a portinha, que não ficou totalmente fechada, deixou uma pequena brecha, afinal, eu tinha quebrado a tranca.
O lado de cá era tão escuro, mas tão escuro que eu não conseguia ver nada, nada, não há nenhuma sombra por aqui - acho que tudo são sombras.
A criatura continuava tentando abrir a porta do quartinho sem sucesso e eu fiquei em pé encostada numa parede. Do nada Figo começou a chorar. "Mas que bela hora pra fazer barulho hein, menino?" falei bem baixinho. O choro foi ficando mais longe, ele estava se afastando de mim como se estivesse andando em um corredor. Não tenho muita escolha, né? Vou seguí-lo e ver onde esse labirinto escuro vai dar. A única coisa que me guia por aqui é a parede...





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Na hora que eu peguei o meu celular, ele descarregou. Peguei o celular do meu pai, que estava esquecido no meu bolso, e usei para iluminar o local. A luz dele é forte, a tela é grande, ou seja, muito útil!
As paredes parecem estar muito escuras, vejo algumas marcas de dedos, parecem ser sangue ressecado... Iluminando o fim do corredor, vejo que ele se dobra para a direita, isso aqui tá mais para um labirinto!
Quanto mais eu ia andando, mais alto ia ficando um ruído diferente do choro do Figo. Parecia um soluçar, daqueles que a gente dá depois de chorar muito, entende?
No fim do corredor, peguei à direita e era uma escada o caminho a seguir. "Ai não, é só o que faltava... Um porão..." pensei, já me conformando que as coisas não podem ficar pior.
O som do soluço aumentava e o Figo começou a chorar mais alto, misturando alguns latidos que pareciam tristes. Gente! Será que minha família está lá?
Desci as escadas correndo, ignorei todas as dores que estava sentindo. Cheguei ao fim da escadaria e iluminei o lugar... Vi uma pessoa extremamente fraca, presa pelos pulsos a correntes que estavam presas à parede. O corpo tinha tiras de pele arrancadas e muito sangue ressecado pelos ferimentos. Essa mulher tinha passado por muito, muito sofrimento. Ela não conseguia sequer levantar a cabeça para me olhar.
Apesar de esperar que fosse a minha irmã (pelo menos estaria viva), fiquei em dúvidas, achei um pouco alta demais para ser ela.
-Mana? perguntei, apontando a luz para ela.
Ela não respondeu, só soluçava. Tinha que ser a Érica, por que o Figo ficaria chorando por essa moça se não fosse alguém que ele gostasse muito?
Me aproximei lentamente, me abaixei um pouco e afastei o cabelo do rosto dela.
Ao ver aquela face, dei um passo pra trás de sobressalto e falei: "Eu... Eu... Eu conheço esse rosto... Não é a Érica... Quem é você??"



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"Daonde eu conheço essa garota??" fiquei pensando.
-Sam... Sam... Samara... - ela falou fracamente o meu nome, ainda sem levantar a cabeça.
Ela sabe o meu nome! A gente se conhece... Mas daonde...?
-Quem é você? - eu estava mais preocupada em saber quem era ela do que libertá-la das correntes.
-Me tira daqui, Samara... - ela me pediu, forçando a cabeça pra me olhar, sem sucesso. Ela está muito fraca...
-Como eu faço isso?? perguntei.
Ela balançou a cabeça pra cima duas vezes, sinalizando algo na parede logo na frente dela. Me virei e com a luz pude ver duas chaves penduradas em um prego. Com essa chave eu abri os cadeados e ela caiu no chão, deitada, acabada. Me agachei e apoiei a cabeça dela nos meus joelhos. Afastei os cabelos do rosto mais uma vez e foi quando veio tudo à mente: é a melhor amiga da Érica, o nome dela é Laura! Ou pelo menos costumava ser. Elas eram muito amigas, mas nunca mais a vi na minha casa. A Laura criou o Figo por alguns meses, mas teve que doá-lo para a Érica, porque se mudou para um apartamento.
Será que eu nunca mais a vi por que ela esteve presa por aqui?
-Laura? - perguntei para confirmar.
Ela balançou a cabeça levemente. Lembrei de uma barrinha de cereal que eu carregava no bolso e dividi entre nós duas. Fiquei impressionada com a vontade que ela comia, acho que fazia dias que não ingeria nada. Após algum tempo, depois de ela se recuperar um pouco, perguntei o que havia acontecido.
-Foi um acidente, Samara. Eu viajava com meus pais pela estrada aqui perto quando o carro capotou e eu já acordei aqui. - ela falou.
-Nossa, mas foi algo bem parecido que aconteceu comigo... E os seus pais? Você os encontrou, Laura?
Ela abaixou o rosto, vi que ficou triste.
-Laura... O que essas coisas fizeram a você? - perguntei.
-Elas não são COISAS, Samara! São PESSOAS!! - ela falou com raiva - são pessoas como EU e VOCÊ. Na verdade... Dois deles são meus pais...
Arregalei os olhos e engoli seco. "Será que matei alguém da família DELA?"





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-Laura, o que tá acontecendo aqui? O que aconteceu? - perguntei.
Ela suspirou, olhou pro lado e me contou.
-Samara, eles mortificam as pessoas aqui! É isso que eles estão fazendo comigo, é isso que eles fizeram com meus pais, é isso que eles vão fazer com você. Aquele acidente mudou essa cidade, aqui não é um lugar normal, ninguém que fica aqui por muito tempo é normal!
-Então a gente tem que sair daqui, vamos sair daqui! - me levantei.
Ela resistiu. Como assim, ela não quer sair daqui? Fiz uma expressão de desentendida.
-Samara, eu te falei que quem fica aqui por muito tempo não fica normal. O que eu vou fazer se sair daqui? Eu estou toda rasgada, meus pais viraram pessoas quase mortas! - ela falou desesperançada...
Insisti de que há vida além desse lugar, mas ela continuou resistindo.
-Laura, meus pais podem estar vivos, a Érica pode estar viva, pelo menos me ajude a sair daqui... Como uma última boa ação... - estava quase implorando.
Ela suspirou de novo, passou um tempo pensando e finalmente fez um gesto positivo com a cabeça.
É agora! Não estou mais sozinha, vou achar minha família e ir embora dessa cidade assombrosa...
Queria que as coisas fossem fáceis assim...






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Subimos as escadas e estava silencioso do lado de fora daquela escuridão. Fiquei pensando se deveria sair... Um pensamento maluco, eu sei, mas tenho poucas chances de sobreviver se sair... E se ficar também! Nossa... Que confusão na minha mente... Será que essa cidade já está me afetando?
"Samara, vamos fazer isso?" Laura me perguntou.
"Vamos..." falei e abri a portinha. A porta do quartinho estava aberta e eu pude ver que chovia torrencialmente do lado de fora do prédio. Ao chegar na porta do quartinho, fiquei assustada ao ver que o corpo da criatura que eu matei com uma barra de ferro já não estava lá e não havia nenhum rastro de que algum dia isso aconteceu. Laura percebeu minha reação e perguntou:
-Samara, o que foi? Que cara é essa? Você viu algo?
Neguei rapidamente e tentei disfarçar. Figo começou a ficar agitado, fazendo barulhinhos de como se tivesse nervoso... Coisa boa não deve ser.
Chegamos na porta do quarto e ficamos olhando para o andar de baixo, que é onde fica a saída. O dia não está muito iluminado, então as sombras estão muito suaves. Mas ainda sim era possível ver que havia movimento no térreo, como se alguém estivesse vigiando a porta de saída. "Droga..." pensei... E aí senti uma gota cair no meu ombro. "Tá chovendo aqui dentro?" falei baixinho pra Laura e passei a mão no ombro pra limpar. Quando olhei minha mão, vi a coloração vermelha escura. "Não... Não pode ser..." pensei. Na mesma hora eu e Laura olhamos para o teto. A cena era bizarra...!
A pele daquela criatura havia sido totalmente arrancada, nela foram rasgadas as palavras "SEM SAÍDA" e estava pregada no teto. Mais uma vez tapei minha boca e fui pro canto do quarto. O medo me consumiu, comecei a ver tudo escuro, fui me encolhendo enquanto via as últimas cenas antes de apagar totalmente: Laura tentava me segurar e me deixar acordada e por trás dela vinha uma criatura, subindo as escadas, segurando a mesma barra de ferro com a qual eu acertei a cabeça daquela outra. Não consegui fazer nada para alertar Laura. Tudo ficou escuro. Desmaiei.






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A visão foi ficando menos turva, aos poucos eu conseguia ver ao meu redor. Estava no mesmo lugar, exatamente como havia apagado. Não parecia ter passado muito tempo, mas a chuva já havia cessado. De longe eu conseguia ouvir a voz a Laura misturada a choro, mas era muito baixa, ela não parecia estar em apuros.
Não vi Figo por perto e nem consegui sentir o cheiro dele. Me levantei e percebi que a Laura estava no andar de baixo, e não estava sozinha.
"Eu sinto muito mãe, sinto muito ter te desapontado, eu só não quero que ninguém mais passe pelo que estou passando... Mas... Se essa é a regra pra não te perder, eu vou cumpri-la..." ouvi a Laura dizer em meio às lágrimas. Pouco depois ela veio subindo as escadas e eu voltei para onde eu estava sentada, fingi que estava ainda apagada. Espero que ela não tenha percebido minha movimentação...
-E aí, dei um jeito na situação... Vem, vou te levar pra fora daqui. - a Laura falou tão calma que não parecia que estávamos num cenário de filme de horror.
E agora? Nem nela eu posso confiar. E o Figo está desaparecido. Talvez eu deva tomar atitudes drásticas...





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Ela me deu a mão, me levantou e saímos do prédio. Para meu alívio, do lado de fora a única coisa que havia era o Figo. Ele estava bebendo água de uma das poças. O abracei e fiquei aliviada... Pelo menos tenho ele comigo de novo.
Perguntei pra Laura onde ela achava que estava minha família e ela apontou para o prédio mais alto, para o último andar.
-É de lá que eles vigiam a cidade... É de lá que as pessoas saem, digamos, modificadas. E é lá que mora o chefe dessa cidade. - Laura falou
-Peraí, chefe? - eu não estava entendendo.
-A criancinha que sobreviveu ao ataque... Ela cresceu... Hoje, é ele quem torna esse lugar um inferno. - ela falou com um sorriso e um olhar maléfico.
Senti um frio na espinha e desviei o olhar para o prédio. No último andar eu pude ver uma face através do espelho, com a mesma expressão maléfica da Laura.
-Lá... Lá não é seguro... Eles estão em todo lugar... Será que vou conseguir? - perguntei gaguejando.
-Não sei se vai conseguir... Mas você pode tentar... - e Laura começou a dar passos em minha direção. Deu uma última olhada para o último andar do prédio e continuou a me encurralar.
-Laura, o que é isso? Pára com isso. - falei, afastando-a com meus braços.
-Me desculpa, Samara, mas você não pode sair daqui - e levantou a barra de ferro para me bater.
Não tive outra opção, tive? Puxei a faca e a golpeei no peito, logo no coração. Me afastei e ela caiu de joelhos, soltou a barra de ferro e por fim deitou no chão. Era apenas um cadáver agora. Minha última esperança literalmente morreu. E eu a matei.
Comecei a ser consumida por um ódio, uma fúria, vi tudo vermelho. Gritei como uma das criaturas, de tanta raiva. Fiquei arfando por alguns segundos, encarando a janela.
E, eu juro... Eu vi na janela... O rosto da minha irmã, com uma expressão de horror... Parecia congelada.
Não sei se ainda estava viva, parecia não se mexer.
Nesse momento, parecia que minha cabeça ia explodir.
Estou certa agora.
Nem que eu morra tentando, eu vou lá.
      




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Procurei um lugar seguro, que pudesse me esconder daquelas criaturas diabólicas. Figo já não late mais, não sei o que houve com ele, parece que está traumatizado...
Contei as horas enquanto o ódio me consumia, a cidade está em absoluto silêncio, parece que não sou a única que está tramando algo...
O céu fechou novamente, ficou escuro como nunca havia visto antes, parecia que estava prevendo que al
go de ruim estava para acontecer (como se tudo o que já aconteceu não fosse suficiente).
Estava anoitecendo e eu já não sabia o que esperar pra ir lá.
"Tenho que ir. Eu PRECISO ir." repeti para mim mesma.
Me levantei e aproveitei os últimos momentos com iluminação do dia para apanhar objetos que pudesse usar como arma.
Anoiteceu e eu via uma luz acesa no último andar do prédio.
Pelos cantos eu fui me aproximando, me escondendo entre entulhos e buracos na parede, enquanto sentia o pressentimento de que algo ruim estava para acontecer.
"É só um pressentimento..."
Cheguei à porta do prédio. O vidro da entrada estava todo quebrado e as pontas que sobraram estavam sujas de sangue. Com a luz do celular, observei a destruição e o caos que tomavam conta do lugar. Acho que era um prédio comercial.
Me aproximei do balcão que provavelmente era a recepção e com a luz eu vi o celular da minha irmã. Peguei-o e apertei um botão qualquer para acender a tela.
Senti um calafrio tremendo ao ver que na tela estava uma foto minha de poucos momentos atrás, de quando estava chegando no prédio.
O medo paralisou minhas pernas, as lágrimas caiam aos montes.
Sabe aquela sensação de que tem alguém se aproximando, o silêncio fica diferente, sabe? Comecei a sentir.
Me virei e não vi nada, apenas escuridão.
Então um relâmpago iluminou uma silhueta no meio da entrada do prédio. Congelei.
-Sa... Ma... - a criatura falou e logo depois foi ao chão.
Fiquei alguns momentos sem saber o que fazer, mas o Figo foi direto lá e começou a cheirar e latir.
Me aproximei e vi... Fechei os olhos e abri novamente pra ter certeza.
-ÉRICA?


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Me aproximei dela, vi várias marcas de sofrimento em seu corpo.
-Eu não consigo fazer isso!! Não consigo! - a Érica começou a gritar enquanto sua voz se misturava ao choro - Me matem! Por favor, me matem, mas deixem ela ir!
Engoli seco e olhei ao redor. Do fundo da escuridão eu comecei a ver pontos brilhantes olhando diretamente para mim. Eles iam se tornando maiores e mais fortes... Se aproximando de nós...
-Samara... Saia daqui, por favor... Eu te imploro, não me salve...- Érica me pedia chorando.
-Mas, e os nossos pais? E você? Eu não p...
-ELES ESTÃO MORTOS! - ela me interrompeu - Por favor, Samara... Salve-se! Eles vão terminar de me esfolar e depois vão fazer o mesmo em você! É melhor morrer do que ficar assim, como estou. Corre, mana! Corre...
-Mas... - Hesitei... Como posso simplesmente fugir e deixá-la para trás?
-CORRE! Eu te dou cobertura!! - ela se levantou, puxou uma faca e me empurrou para fora do prédio.
As lágrimas caíam aos montes, meu coração estava acelerado... Eu não queria correr. Vi várias criaturas com seus olhos sombrios começarem a sair da escuridão em direção à Érica e a mim.
Depois daí, tudo o que lembro é vago... Lembro que vi a mana lutando com as criaturas, corri em direção à estrada e o Figo veio logo atrás, correndo atrás de mim. Cheguei ao carro capotado e parecia que nada passou por ali durante esse tempo. Eu estava fraca, muito fraca. Olhei para a Rosa da Morte mais uma vez e no alto do prédio a luz iluminava o contorno de uma criatura parada, imóvel, me olhando, me querendo.
Lembro de um carro chegando, pessoas me ajudando, perguntando por outras vítimas do acidente mas tudo o que eu pude fazer foi repousar no banco e abraçar o Figo.
Do carro eu via a cidade ficando pra trás, abandonada, obliviada...

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