sexta-feira, 20 de julho de 2012

Conto "A Boneca Yule"

                  

Este conto começou a ser escrito no dia 9 de julho de 2012 e encerrou no dia 18 de julho de 2012.

O que uma simples bonequinha de louça pode fazer? Ágata Carmem teve que descobrir da pior maneira possível.





Hoje contratamos uma babá para a Fernanda. Foi bem difícil, porque não são todas as empregadas que aceitam dormir aqui na nossa casa, elas geralmente tem filhos para cuidar então não querem deixar de ir pra casa e nós precisamos ter alguém aqui à noite. Geralmente tem algum evento que faz com que eu e meu marido fiquemos fora a noite toda e não queremos que a Nanda deixe de dormir para nos acompanhar, uma criança de 5 anos precisa descansar. Pois bem, o nome da babá nova é Abigail, ela fala nossa língua um pouco complicado pois veio de outro país, mas acho que não vai ser um problema, ela parece ser muito carinhosa. Amanhã ela começa, espero que a Fernandinha goste dela...




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A recepção da Fernanda para com a Abigail foi muito boa - melhor do que eu esperava. Elas se deram muito bem, a Abigail até trouxe um presente para a Nanda: uma boneca que era da Abigail quando ela era pequena. Ela está um pouco velha (pouco?) e vamos mandar restaurar para que a nossa pequena possa brincar com ela..






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A boneca voltou da restauração - ficou melhor, não acham? Darei hoje para a Nanda, assim que ela voltar do balé com a Abigail. Espero que ela goste!





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Essa noite eu acordei de madrugada pra beber água e quando estava descendo as escadas ouvi passos pequeninos vindos da sala de estar. "Deve ser a Abigail, ela fica acordada andando pela casa a noite..." pensei. É um tanto quanto estranho uma pessoa dormir tão pouco à noite e não ficar cochilando de dia... Cheguei no corredor, entre a sala e a cozinha e olhei para a sala, de longe, e não achei nenhuma silhueta na escuridão. "Abigail?" falei baixinho e não obtive resposta. Mas que coisa estranha! Me virei para ir pra cozinha e ouvi um barulho de talher vindo de lá, mas estava tudo apagado. "Abigail, é você aí?" falei um pouco mais alto e o som do talher parou. Cheguei na cozinha e acendi a luz - e lá estava ela, tomando café na completa escuridão. "Me desculpe se a assustei dona Ágata, mas eu também fiquei surpresa com você acordada de madrugada..." Abigail falou com aquele sotaque estranho. Eu estava confusa e desconfiada, olhei pra ela e pedi pra ela me responder da próxima vez que eu perguntar por ela. Mas que coisa!
Me virei para pegar água na geladeira e me deparo com a boneca da Nanda no balcão. "O que essa boneca tá fazendo aqui?" perguntei, afinal, se é da Fernanda, deveria estar no quarto dela. "Ah... É... A Fernanda disse que a boneca queria fazer companhia a noite pra mim e me deu antes de dormir..." a Abigail parecia estar escondendo alguma coisa. Amanhã eu pergunto pra Fernanda se isso é verdade. Bebi a água, me despedi e fui dormir.





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Fernandinha acordou cedo e bem disposta. Hoje é sábado, é dia de ir para o parque - lá ela encontra um amiguinho dela que eu aposto que ela está com uma paixonite! Saímos cedo, eu, Nanda com a boneca dela e a Abigail. Chegamos lá, como de costume, a Nanda encontrou o menininho e começaram a brincar... Sentei junto da Abigail e comecei a conversar sobre a história dela (vai que ela deixa escapar algum segredo que eu deva saber...) e uma coisa me intrigou, vejam só: ela nasceu na Escócia e veio ainda bebê para nosso país com a família, fugindo de uma crise econômica. Viveu em uma aldeia escocesa (por isso o sotaque estranho), casou-se e teve uma filhinha que morreu com poucos meses de vida. O marido morreu em um acidente de trabalho há 15 anos e desde lá ela vive só, cuidando de crianças. Bem, eu sei que posso estar sendo muito desconfiada (e sem motivos) mas... O que aconteceu com a filhinha dela? Eu perguntei, mas ela não quis falar muito sobre isso, disse que a bebê teve complicações de saúde e faleceu... No mínimo estranho. Mas quero deixar esses pensamentos pra lá, a mulher mal chegou e eu já estou com ideias assim...! Fomos interrompidas pelo choro do garotinho vindo do parquinho. O menino estava com um arranhão da testa ao queixo e sangrando. Assustada, corri pra ver o que era e a mãe dele também, mas ele não dizia uma só palavra, só chorava.
"Fernanda, por que você fez isso ao garoto??" perguntei para a Nanda.
"Mamãe, não fui eu não!! Eu juro!! Foi a Yule!" Fernanda se protegeu. "Quem é Yule, Fernanda? Que conversa é essa? Só estavam vocês dois brincando aí!"
"Mãe, Yule também está aqui..." e a Nanda mostrou a boneca, colocando-a em minha direção. Fiquei irada! Agora ela vai usar essa boneca como desculpa para as artes dela? Pedi desculpas à mãe do menino e levei a Nanda dali, disse que ela vai ficar de castigo quando chegar em casa.





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Chegamos em casa, disse pra Abigail arrumar o banho da Fernanda enquanto eu conversava com a pequena. Sentei de frente pra ela e disse que precisava conversar muito sério com ela. 
-Filha, por que você machucou aquele menino? 
-Mamãe, eu já falei, não fui eu não, foi a Yule! 
-Se foi a Yule, como e por que ela fez isso com ele? 
-Ela não gostou dele... Disse que o Vítor queria me tomar dela... 
-E aí ela foi lá e arranhou ele? 
-Não. 
-Não?? 
-Ela me convenceu a fazer isso... 
-Fernanda, então foi você que arranhou o menino! Peguei a mão dela e vi um pouco de sangue nas unhas. 
-Mamãe, eu não queria fazer isso, eu juro! Foi a Yule, ela que... 
-Tá bom, chega, vá tomar o seu banho, essa conversa terminou. 
A Nanda subiu as escadas e deixou a boneca sentada no lugar que ela estava. Fiquei parada, observando... Várias pessoas atribuem acontecimentos às bonecas, como se elas tivessem algum tipo de vida, pudessem se mexer e até falar... Talvez eu deva manter minha mente aberta para isso, afinal, a Fernanda nunca foi de machucar as pessoas... Uma coisa interrompeu meus pensamentos. A boneca se moveu levemente para o lado, como se estivesse deitando na cadeira. "Deve ser o vento" e fechei a janela, me virei e a boneca estava de bruços, totalmente deitada. Como assim? Peguei-a e segurei bem de frente pra mim, um frio passou por todo o meu corpo ao encarar aqueles olhos azuis e profundos enquanto aquele sorriso pequenino parecia escarnecer de mim... Talvez eu deva conversar sério sobre a história dessa boneca com a Abigail.





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Deixei cair a noite, Fernanda adormeceu e Abigail estava no banho. Decidi me livrar dessa boneca antes que ela vire um problema maior. Fui no quarto da Nanda, mas Yule não estava lá... Olhei na prateleira, na casa de bonecas, na cama mas a boneca não estava em canto nenhum... E eu jurei que tinha visto a Fernanda ir pro quarto com ela... Meu celular tocou, era o meu marido, fui pro meu quarto e atendi... Ele disse que estava voltando da viagem de negócios na manhã seguinte e perguntou como as coisas estavam... Preferi não falar que tinha algo estranho acontecendo.
No meio da ligação eu ouço uma voz de criança cantarolando uma canção, a voz parecia ser da Fernanda. Me despedi do meu marido e desliguei. "Nandinha? Tá acordada, filha?" perguntei e como resposta ouvi risadinhas. Entrei no quarto e vi a Fernanda deitada, exatamente como eu havia visto há poucos minutos. Meu coração acelerou, saí do quarto dela e ouvi os passinhos no térreo novamente. Desci correndo as escadas e estava tudo apagado, exceto por uma luz fraca vindo do banheiro onde estava a Abigail. Acendi a luz da sala e encontrei a Yule sentada no sofá, seus olhos estavam virados exatamente pra mim. "É agora que eu vou te mandar pra longe!" peguei nela com raiva e medo. "O que a senhora pensa que vai fazer?!" ouvi uma voz cheia de raiva...





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"Fernanda? O que é isso??" gritei surpresa e sem reação. A Nanda desceu as escadas correndo e tentou tirar a boneca de mim mas eu não deixei.
"Por que você tem que tirar de mim a minha única amiga? Ela não vai gostar de você se continuar assim!! E eu também não!!" Fernanda chorava e gritava comigo, nunca havia visto ela desse jeito.
"Pare de gritar comigo e vá pra sua cama!!" mandei ela ir logo, não sabia do que ela era capaz. Abigail apareceu e abraçou a menina, que começou a chorar sem parar.
Saí de casa em direção ao quintal, joguei a boneca no chão e senti um mau estar.
"Não!! Por favor, não faça isso!!" Abigail veio correndo atrás de mim.
-Essa boneca não é boa, Abigail! Por que você deu ela pra minha filha? Hein? Me fala!! - perguntei pra ela, como resposta vi seus olhos vazios se encherem de lágrimas encarando a boneca no chão. Comecei a cavar um buraco no chão com minhas próprias mãos e Abigail ficou parada, chorando, com o olhar perdido. Minha raiva só parou quando quebrei a cabeça de louça da Yule numa pedra e a enterrei.
-Judite... - Ouvi a Abigail falar fracamente esse nome.
-Quem é Judite?? Hein?? A Yule é Judite? Perguntei com raiva, estava transtornada.
Abigail correu pra dentro de casa e sumiu - sim, não consegui achar ela em lugar algum... Fernanda voltou a dormir e agora vou tentar dormir também... Amanhã, de dia, tento descobrir quem é Judite - e mandar a Abigail pra bem longe! Essa mulher tem mistérios demais pra mim. Quanto mais longe, melhor.





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Acordei extremamente tarde (para meus padrões), já passava das 11 e 20. Sou de acordar pelo menos às 7 horas (mesmo que seja domingo), não entendi esse meu "apagão" até agora... Me levantei, a casa estava extremamente silenciosa, exceto pelo barulho do vento nas frestas da janela, a força do vento era tanta que eu achei que vinha tempestade por aí. "Fernanda?" perguntei abrindo a porta do quarto dela. "Nanda?? Cadê você?" ela não estava lá. Desci as escadas e não vi nem ela, nem a Abigail em canto nenhum dentro de casa. "Ai meu Deus, será que aquela mulher raptou a minha filha??" comecei a ter falta de ar só de pensar nisso. Uma voz fina veio de longe, do lado de fora. Saí pela porta da frente e dei de cara com as duas, e a minha filha carregava um picolé. Fiquei brava, muito brava, afinal, é a MINHA filha, ela precisa me dizer onde leva a menina! Peguei a mão da Fernanda e puxei-a pra longe da Abigail.
 -Você é doida? Levar minha filha pra longe sem nem me consultar?? Falei totalmente exaltada.
-Calma, dona, calma!! Eu pedi pra senhora sim!! Você passou boa parte da noite acordada, sentada na cama. Inclusive, na hora que nós saímos pro parque, você estava acordada...
-Que mentira esfarrapada! Eu estava dormindo! Eu dormi a noite inteira, não sou como você, que nunca dorme! - a essa altura eu já estava confusa, mas não queria demonstrar.
-MÃE!! Pare de gritar com a Abigail!! A senhora tirou a Yule de mim e agora quer tirar a Abigail também? Eu te odeio!! - Nanda falou e atirou o picolé no chão, entrando em casa logo em seguida. Olhei pra Abigail, ela estava com o mesmo olhar perdido de quando eu enterrei a Yule. Me aproximei dela, encarei-a nos olhos e disse que se ela tiver algo pra me falar, ela falasse naquele momento. -Eu não preciso falar nada. Judite vai te falar tudo... - ela falou com um ar totalmente macabro aquele nome. Falou e entrou em casa, enquanto eu ficava perguntando quem era Judite, sem respostas.




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Dispensei a Abigail por 3 dias, disse que precisava pensar sobre a estadia dela na nossa casa. Não quero puni-la por desconfianças infundadas, por isso vou dar esse tempo e investigar sobre ela. Comecei indo visitar meu amigo policial. Passei o nome completo e o número dos documentos da Abigail e ele me deu o resultado da ficha dela no fim do dia... Aparentemente a Abigail foi chamada para ser testemunha de um processo de acusação contra o marido dela, mas ela nunca apareceu. Adivinhem sobre o que era o processo... A filha dela. A filhinha que ela disse que morreu ainda bebê de complicações de saúde... Pois bem, o marido dela estava sendo acusado de ter estuprado, matado e enterrado o corpo da filha de apenas 5 anos no quintal de casa, mas ele morreu durante o processo, o que encerrou o caso. Mas não foi dito o nome da filha deles... Será que era a Judite, de quem ela tem falado? Amanhã vou lá nos arquivos do jornal do estado... Procurar pela data de óbito de uma possível Judite, filha de Abigail. Tenho que colocar aqui uma observação, creio que seja importante (e que me assustou um pouco, tenho que confessar...). Essa tarde, enquanto eu estava brincando com a Nanda no quarto dela, ouvi passos no térreo. Perguntei pra Fernanda se ela havia ouvido, ela fingiu que não me ouviu. Pouco tempo depois, os passos foram ficando mais fortes e do nada a Nandinha se levantou e saiu correndo para a sala, chegando lá falou "Yule, que bom que você voltou!! Vem brincar comigo!", eu fui atrás e fiquei muito surpresa com essa reação dela... Quando eu cheguei ela fez um ar de triste e falou "Não precisava ir embora..." e voltou pro quarto. Durante o resto do dia não ouvi mais nada.




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É o segundo dia sem a Abigail por perto e hoje eu fiquei realmente com medo. Nessa madrugada eu não consegui dormir, fiquei boa parte da noite deitada ao lado da Fernanda, preocupada que algo pudesse acontecer com ela. Por volta das 4 e 15 da manhã eu ouvi um voz fininha cantarolando uma canção no andar de baixo. Fiquei parada, ouvindo com muita atenção essa musiquinha macabra ser cantada por 10 longos minutos, até eu criar coragem para descer. Com as pernas bambas fui descendo (e acendendo todas as luzes que eu podia alcançar). Cheguei na sala, a musiquinha parou. Vi a cortina se mexer suavemente por causa o vento. "Eu fechei essa janela..." pensei. A musiquinha voltou a ser cantada, só que dessa vez vinha do porão - e eu sempre tive medo daquele porão. Meu coração estava batendo tão forte que eu podia sentir ele na minha boca, ecoando pela minha cabeça. Não, não vou ter coragem de entrar aí... Um pouco fraca de tanto medo perguntei:
-Yule... É você? E a musiquinha parou de ser cantarolada.
Senti uma onda de calafrios por todo o corpo. Ouvi risadinhas escarnecedoras. Não conseguia mais ficar ali. Uma mão tocou no meu ombro e eu soltei um grito de horror.
-Calma, Carmem!! Sou eu!! - meu marido falou assustado. Suspirei profundamente, estava trêmula e ofegante. Falei o que tinha acontecido, ele não entendeu muito bem, já que eu não tinha falado nada do que tinha acontecido antes pra ele. No fim ele desceu lá e não encontrou nada - só a janelinha aberta com a cortina esvoaçante.




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Na hora do almoço eu cheguei pra Fernanda e, como quem não queria nada, perguntei se ela sentia falta da Yule.
-Sim, eu sinto falta dela, mas ela disse que não vai voltar par cá enquanto a senhora estiver comigo. Aí ela disse que me queria só pra ela e que ia machucar quem atrapalhasse.
Estremeci, respirei fundo e perguntei:
-E o que você disse pra ela?
-Eu disse que não queria que você se machucasse, aí ela disse que era tarde demais, porque ela não gostava mais de você.
A comida desceu seca. Preciso falar com a Abigail, saber se tem algum jeito de parar essa... coisa.




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Cheguei para a Fernandinha e pedi para ela chamar a Yule para que nós pudéssemos conversar. Ela disse que ia tentar.
Uma hora depois, enquanto eu estava na cozinha de costas para a porta, sinto uma presença perto de mim. Me virei e vi a Fernandinha parada na porta, segurando a Yule e - pasmei - a boneca estava INTEIRA.
-Mãe, ela veio. - com um sorrisinho inocente a Nanda falou enquanto me mostrava a Yule.
"A... a... a..." eu gaguejava, tentava falar alguma coisa, mas estava chocada demais.
Depois de alguns segundos sem reação, minha primeira atitude foi correr em direção a elas e tomar a Yule da mão dela. A Fernanda começou a gritar, implorar, chorar, pediu continuamente para que eu não destruísse a Yule enquanto eu procurava pelo álcool no meu armário.
-Mãe, POR FAVOR mamãe!! Espera a Abigail chegar pelo menos!!
-E por que eu deveria fazer isso??
-Yule disse que não vai adiantar destruir ela sem falar com Abigail...
Olhei para os olhos chorosos da Fernanda, respirei, olhei para os olhos da Yule. Minha cabeça começou a doer fortemente ao encarar aqueles olhos que depois de um tempo pareciam refletir um mal que eu não posso descrever.
-Mãe, ela disse que vai me machucar se você machucar ela de novo.
Tirei meus olhos daquela boneca, olhei ao redor, me senti totalmente perdida. Tentava respirar, mas parecia não haver ar. Com medo do que a Yule poderia fazer a minha filha eu fiz o que alguém já havia me dito para fazer - venci meu medo e desci no porão, abri o baú quase centenário que tem dois cadeados e joguei a boneca lá, o que causou uma rachadura na cabeça dela. "Nem ouse sair daí ou machucar minha filha" falei, embora eu não saiba mais o que fazer.
Fechei os cadeados, tranquei a porta e me deitei ao lado da Fernanda na cama dela, abraçada. Só quero que essa noite termine logo.




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É nesse baú que a Yule está guardada... Vou fazer com que a Abigail venha pra cá hoje mesmo. Quem sabe nós conseguiremos pôr um fim nisso tudo!


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Acordei num susto, levantei da cama e fiquei alguns minutos parada, encarando a escuridão. Vi que meu coração estava muito acelerado e escorria algumas gotas de suor da minha testa. "Mas que danado eu estava sonhando?"
Pensei em voltar a dormir, a casa parecia estar bem calma. Mas alguma coisa estava me impedindo de relaxar. Às vezes acho que silêncio demais é sinal de que algo está tão errado quanto quando ouço ruídos estranhos.
Saí por afora do quarto da Fernanda, olhei para a pequena para ver se ela estava bem e tranquei a porta ao sair.
Meu marido está na cama, deitado, tudo aparenta estar bem.
Se tudo "parece" estar bem, eu realmente devo me preocupar e descer as escadas?
E aí, volto pra cama ou desço as escadas pra ver se tem algo acontecendo lá embaixo?






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Bem, no fim das contas fiquei confusa sobre o que deveria fazer...
Decidi acordar o meu marido e pedi pra ele descer pra ver o que era - ou o que não era.
Fiquei na frente da porta da Fernanda olhando para ela e vigiando os passos do Marcelo.
Ele desceu, olhou a sala, foi na cozinha, tentou abrir a porta do porão mas eu havia esquecido de dar as chaves pra ele. Bem, talvez tenha sido melhor mesmo não ter aberto aquele cômodo da casa.
Ele subiu e ainda soltou uma gracinha:
-Dona Ágata Carmem, você precisa se acalmar. Não há nada de errado aqui, está tudo trancado e no seu devido lugar. Vem, vamos deitar.
Ele me puxou e deitamos na nossa cama. Fiquei virada olhando para o corredor.
Acabei adormecendo. Não sei em que momento eu me acordei, novamente com um pulo e muito suada. O Marcelo estava num sono profundo e não notou que eu havia acordado. Decidi olhar a Fernanda - por que eu saí de perto dela? - e foi quando começou meu desespero.
Assim que cheguei na porta do meu quarto notei a porta dela completamente fechada - eu havia deixado uma brecha considerável - e ao tentar abrir, ela estava trancada.
"Fernanda!! Fernanda!! Abre a porta, filha!!" gritava enquanto girava a maçaneta. Chamei pelo nome dela várias vezes e meu desespero foi aumentando. O Marcelo acordou e foi ver o que estava acontecendo. "O que foi? O que é isso Carmem?" ele estava mais assustado do que eu, parecia.
No meio do desespero dele, meus gritos e do som da porta sendo forçada por mim, eu ouço uma melodia. "Silêncio, Marcelo!!" parei tudo o que estava fazendo e encostei meus ouvidos na porta. Senti meu mundo desabar ao notar que era a "voz" da Yule cantando dentro do quarto da Nanda.







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"Yule? Yule, é você?" perguntava com a voz trêmula e o coração ficando pequeno pro peito. A musiquinha continuava sendo cantarolada.
"Judite?" perguntei e a voz parou. Senti um aperto no meu coração.
"Marcelo, abre essa porta, empurra isso agora!!" falei pro meu marido, que começou a dar chutes forçando a porta.
Depois de longos segundos a porta foi aberta.
Estava tudo escuro e tive que acender a luz.
A lâmpada fraca iluminou uma das cenas mais estranhas que já vi na vida: Abigail estava de costas para a porta, vestindo um vestido igual ao da Yule.
"A... Abigail?" abri bem os olhos pra ver se eu não estava enganada. Ela não me respondeu.
-Abigail, cadê a Fernanda? RESPONDE! - Marcelo gritou.
Ela começou a cantarolar a musiquinha de antes... Com a VOZ DA YULE!!! Aiii!!!
"Judite!!! Pára!!!" não sei o que me fez chamá-la de Judite, mas fiz certo. Ela parou de cantarolar e baixou a cabeça.
-Judite, eu não quero que você machuque minha filha... Por favor, não faça nada com ela... - falei com um nó na garganta, quase chorando.
Ela se virou pra mim senti uma queimação da ponta dos pés ao topo da cabeça. Sua expressão parecia a dessas fotos post-morten e seu olhar parecia a escuridão.
"Cadê minha filha??" Marcelo falou e partiu pra cima dela.
  



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Marcelo estava indo em direção à Abigail (ou é Judite?!) quando caiu de joelhos, colocou as mãos na cabeça e soltou um grito de dor. Corri e ele desmaiou em meus braços. Olhei com raiva para aquele ser que estava parado no quarto da minha filha e perguntei com um tom de intimidação:
-Cadê a minha filha? Me diz agora! Me diz!
-Cadê a MINHA filha? - era a voz da Abigail novamente, mas ainda estava com aquele olhar macabro.
Minha filha? De quem ela tá falando? A filha dela não morreu?




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De repente me deu um estalo.
Onde está a filha dela? Onde? É claro!! No baú!!
Deixei ela lá parada com aquele olhar esquisito e corri para o andar de baixo. Como suspeitei, a porta do porão estava aberta. Desci as escadas correndo mais ainda, o coração saindo pela boca, parecia sentir o fluir do sangue por minhas veias.
Acendi a luz e vi a Fernanda deitada desacordada dentro do baú e entre seus braços estava a boneca. "Filha..." comecei a chorar, me ajoelhei e encostei meu rosto na borda do baú. Achei que era o fim, que havia perdido minha filha para sempre.
No meio do meu choro eu ouvi a voz da Nanda. Ela falava algo que eu não entendia, pareciam grunhidos, mas estava falando! Balancei ela várias vezes até que ela acordou. Com seus olhinhos assustados ela me encarou por um tempo.
-Mãe, eu preciso me despedir da Yule e da Abigail. - ela disse calmamente.
Mas, como assim, se despedir? E como tão calma assim?
Ela se levantou e foi andando em direção à escada. Subiu as escadas a passos lentos e eu fui atrás na retaguarda, esperando pra ver o que ia acontecer.
Na sala estava a Abigaill com aquele olhar macabro encarando a minha filha. Abracei a Fernanda e não consegui dizer nem uma palavra. Talvez só a minha filha consiga pôr um fim nisso.
-Toma Abigail, toma a Yule. Eu não quero mais ser amiga dela, eu não quero mais ser sua amiga. - a pequena falou isso com uma firmeza tremenda, parecia ser uma adulta. Com seus braços pequenos esticados ela levantou a boneca em direção à Abigail, que ficou com um ar de surpresa.
-Mas... Era pra você ser minha Judite... - um misto de surpresa e raiva pareciam estar presentes na voz da Abigail. Apertei mais a Fernanda em meus braços, a cada segundo meu coração palpitava mais.




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-VAI... EMBORA... - disse a Fernanda com muita raiva, mas sem gritar.
Abigail franziu a testa e deu dois passos em direção à Nanda.
Com seus braços longos e finos ela alcançou a boneca e a tomou da mão de minha filha. Com passos vagarosos ela se virou, abriu a porta de casa e foi caminhando em direção à floresta que fica a alguns metros da minha casa. Depois de alguns minutos ela sumiu na escuridão. Por fim respirei aliviada. Abracei forte a minha Nanda e chorei bastante.
Algum tempo depois percebi um papel na mão dela. "O que é isso, filha?" perguntei. Ela parecia estar em choque, então eu peguei da mão dela e comecei a abrir, ele estava bem dobrado.
Fernandinha olhou pra mim e disse:
-Ela me disse que só abrisse se eu não quisesse ir embora com ela.
Olhei o papel, mas não estava acreditando no que estava vendo. Era a Abigail junto a uma menina IDÊNTICA à Fernanda segurando uma boneca que aparentava ser a Yule. A foto estava datada de mais de 40 anos atrás e no verso estava escrito:
"Minha querida Judite... Foi bom finalmente te ver de novo. A mãe te ama muito.
Abigail"
Com muitas perguntas não respondidas, tive que continuar com a vida.
Desde que a Fernanda mandou a Abigail embora a Yule só aparece de vez em quando em meus pesadelos...
  

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